Por Miguel Matos
A pintura de Graça Morais, ícone essencial da cultura portuguesa, constitui uma obra baseada na intuição, ligada aos sentimentos e às emoções. As terras agrestes e as gentes de Trás-os-Montes foram o ventre da gestação do universo pessoal e psicológico que faz parte das imagens que cria. São estas referências íntimas e ancestrais que fundam em si os alicerces de um caminho seguido ao longo dos anos com idas e voltas à fonte, à raiz.
A natureza é o lugar essencial onde Graça Morais apoia a sua verticalidade como artista plástica. A sua aldeia é a realidade à qual sempre regressa numa atitude de agarrar-se e largar-se de si para se entregar à pulsão que desse movimento emerge. Com base nas vivências de um meio outrora fechado sobre si, mas ainda hoje conservador dos seus traços essenciais, Graça Morais constrói um outro mundo, o seu próprio, com todas as referências etnográficas que recolheu durante a vida, mas que, após assimiladas e transpostas, não são já puras. São as suas, comidas, mastigadas e transformadas num organismo ele mesmo produtor de cosmogonias. É desta incerteza de origens, da mistura daquilo que é seu com aquilo que lhe foi dado a ver, viver e sentir, desta confusão referencial, que se cria uma obra particular, identificável com um povo, mas pertencente a um outro domínio que é o da vivência pessoal da criadora, codificada e revelada ao exterior através das suas obras.
O que Graça Morais nos mostra nas imagens que cria não são registos senão das suas incertezas, de momentos e lugares, de pensamentos, ânsias e por vezes raivas. Se bebe dos hábitos, lendas e histórias de Portugal e da região que a viu crescer para partir numa aventura quase mística, não é já do domínio da antropologia o que se sente numa pintura como esta. No entanto, esta ideia não é consensual. Críticos há que têm descrito a obra de Graça Morais como um lento trabalho de redescoberta de um imaginário popular, através de uma “recriação gráfica” e inventariando os rituais da gente popular, chegando mesmo a associar a autora a um registo neo-realista com uma vertente antropológica, que busca as raízes de uma memória rural1. Esta posição é contraposta por outros autores, que verificam no trajecto da pintora o desenrolar de um conjunto de idiossincrasias, mais do que de puras observações e registos. Considerar que o que Graça Morais faz é mera antropologia ou etnografia poderá resultar no perigo de reduzir a sua obra a apenas um dos seus elementos constituintes, sendo que a soma destes forma um corpo de trabalho revelador de um mundo próprio, enraizado num contexto rural real e experienciado pela criadora desde a infância. Apesar destas incursões, a recorrência de análises ligadas ao simples carácter de recolha, registo e representação de hábitos e costumes é refutada por opiniões opostas, como a de Sílvia Chicó2, que chega mesmo a situar a obra de Graça Morais dentro de territórios aparentados com os do Surrealismo. Não será uma opinião desconcertante, uma vez que o lirismo, o sabor onírico e até o absurdo, pela associação de díspares realidades, não são estranhos à sua produção artística desde sempre. No entanto, há que notar a ausência de um programa político ou ideológico nesta obra, o que, por si, anula a inscrição da pintora nas referidas correntes artísticas.
Mitos do Inconsciente
“A nossa primeira infância marca-nos a todos e eu fui muito marcada pelo que vivi até aos sete anos nesse lugar [a aldeia de Vieiro], que na altura não tinha electricidade, nem estradas nem telefones”, diz a pintora. “O isolamento era tanto que tudo o que eu vivi foi muito intenso. A relação com o meu pai, com a minha mãe e os meus irmãos, numa família numerosíssima e com aquela gente toda na aldeia, ficaram marcadas profundamente no meu pensamento e no meu coração. Sinto que hoje sou uma privilegiada porque tenho esse mundo dentro de mim.” É da transição das origens rurais e sociais ao lado mais efabulatório e metafórico que cresce a essencialidade da sua obra, também a um nível plástico em que é possível identificar traços fortes de inspiração neo-expressionista. O resultado é a criação de uma terra imaginada, situada “na ligação a um ambiente rural, sagrado, quase mítico, com um campo semântico em que mulheres, gestos, faces, animais, cenas de pastoreio e de caça e matanças se confundem e se agitam numa geografia mental e íntima”3. De facto, falar da obra de Graça Morais é inevitavelmente falar de uma geografia híbrida, que tanto tem de terra e carne como de imaginação e sonho. Uma mitologia uterina, um fio que vem do inconsciente e nos atravessa, embebido da identidade regional, sem que se consiga parar para observar a zona de charneira. E apesar dessa inconstância ontológica, mesmo assim, “penetrar na sua obra é entrar no mito dos rituais que ainda prevalecem no Portugal contemporâneo”, como disse Fernando Pernes4.
Se o mito é, por definição, uma construção social de um povo ou cultura específica, os mitos criados ou recriados por Graça Morais são de outra natureza, são já transformados. Constituem como que mitos pessoais - criações internas a partir de referências intrínsecas não só a si mas também ao meio onde nasceu e cresceu. E daí o afastamento dessa tal visão etnográfica, pois ela é aqui apenas o ponto de partida para uma viagem longa e incerta. Recorrendo assumidamente desta vez a referências da área da Antropologia, Misha Titiev salientava que os mitos são histórias que dizem “principalmente respeito a entidades ou acontecimentos sobrenaturais”5. O mito é como uma linguagem e faz parte do conjunto de sistemas simbólicos de uma comunidade. “Existem na cultura numerosos sistemas simbólicos que resultam por um lado da interacção social e, por outro, de manipulação cultural, constituindo como que uma apropriação do mundo. No entanto, estes sistemas simbólicos não são passíveis de uma leitura universal. Podemos observar que na sua grande maioria, apenas adquirem significado dentro das unidades culturais em que nascem. Na verdade, os símbolos são qualquer coisa de emocional (...)6.
Graça Morais apropria-se dos mitos (principalmente soteriológicos, morais e naturalistas), histórias, imagens e símbolos da sua terra e come-os, torna-os seus. Nesse processo, a pintora afasta-se do mero registo gráfico, da pura etnografia, situando-se no campo entre o sagrado e o profano, o factual e o inventado, o social e o pessoal. Perde-se dos seus suportes religiosos e antigos, afastando-se de referências narrativas para chegar aos territórios da ficção. É uma mitologia que nos envolve naquilo que de mais espiritual temos, enquanto faz uso de elementos simbólicos do quotidiano ou fragmentos de raizes esquecidas no subconsciente. Uma mitologia dentro daquela que é possível descortinar na definição de Victor Jabouille quando refere que o “mito recorda histórias de deuses e de heróis, tem uma tonalidade nebulosa, lírica, agressiva”. Palavras mais do que ajustáveis a uma possível descrição das obras desta artista. Ainda recorrendo a Jabouille, e fazendo o paralelismo com esta pintura, aqui, nestes mundos entre a terra e as gentes evocam-se “sociedades primitivas, grupos reunidos à volta da fogueira, contadores de lendas”7.
Nas imagens que Graça Morais nos apresenta, as narrativas aproximam-se frequentemente dos ritos, como atitudes, gestos e acções de que as suas personagens fazem uso no intuito de atingir uma espécie de harmonia com a natureza, uma via de contacto com o meio visível e invisível. Neste âmbito, e ao contrário do que acontece com os ritos nas culturas tradicionais, o contexto sacrificial simbolizado pela metáfora da caça, não serve já para apaziguar ou captar as entidades metafísicas. Na sua visão, estas actividades acabam por destruir o equilíbrio das forças da vida, mas constroem um padrão de atitudes com os quais uma comunidade se identifica. A pintora ora demonstra, ora questiona a legitimidade de rituais como os da caça e da morte, usando também esta actividade tipicamente masculina como metáfora para a forma como a mulher tem sido tratada nas sociedades fechadas rurais, extrapolando para a generalidade da sociedade em que vivemos. É uma pintora-perdiz, mulher vítima e animal caçado. A perdiz faz parte do vocabulário da sua pintura e aparece como símbolo da dor, do drama, da destruição, da perda... A perdiz e o coelho, como animais que simbolizam a caça, são também animais de extrema beleza. Graça Morais ao pintá-los transforma-os na tristeza da morte e na crueldade da perseguição. Ao aceitar a violência de uma tela que invade o espírito, assistimos à crueldade, à dureza e aos rigores de uma gente.
O Tempo num Rosto
É nas fendas produzidas pelo tempo no rosto seu e de sua mãe que Graça Morais se reconhece como ser mortal e se apercebe da dimensão do tempo. Aí se transformam estes entes num processo efabulatório a que não é alheia a auto-representação quer através dos elementos da cultura da sua região, quer através do seu próprio rosto, ou do rosto da sua progenitora, tal como também nos revemos nos rostos das mulheres da aldeia. É na interpretação destes rostos que a pintora invoca obsessivamente, que se pode encontrar o poder da metáfora, porventura surrealista, do crescimento de raizes ou outras formas vegetais a partir da pele de corpos envelhecidos e ainda assim plenos de vida. São metamorfoses, estas associações tão poéticas como as passagens e transições pelas quais o ser humano caminha ao longo das diferentes fases da vida, principalmente num meio em que existe a calma para se contemplar essas mesmas modificações. Assim, este é também um discurso sobre o corpo, a morte e o envelhecimento físico. Para Pere Salabert, a beleza prodigiosa do corpo humano, baseada na funcionalidade e na limpeza, na ordem e na completude das formas, já não esconde, antes pelo contrário, abre-se a uma deterioração que transformará o belo em monstruoso através da desordem e da deformidade. Entre um e outro extremo? Medeia o espaço que separa o mundo do imundo, a juventude da velhice, a esperança da prostração8. Na pintura de Graça Morais a deterioração da carne não é exactamente um sinal de decadência, mas sim de permanente devir e de
acumulação de experiências transformadas em sábia quietude. É também, e acima de tudo, vida. Assim se repetem expressões carregadas em rostos familiares para a artista e que se relacionam com o observador pela carga de algo inominável a que apenas acedemos superficialmente, mas que intuimos interiormente. Porque, como disse Matisse, “no desenho de um rosto, não interessa a justeza das proporções, mas uma luz espiritual que nele se encontra reflectida”9.
A prática artística de Graça Morais caracteriza-se por uma indefinição permanente, uma constante fuga à catalogação dentro de “ismos”. Até mesmo na série “As Escolhidas” (1995), em que a figuração aparenta ser mais ligada a um registo do quotidiano, nada há de realista ou naturalista. Para além da referida ausência de conotações políticas nestas obras, a visão de Graça Morais sobre estas mulheres é profundamente pessoal, sem agendas ou “recados” sociais ocultos. Nestas mulheres, o que impressiona o observador é a atitude do corpo, os gestos, os movimentos do quotidiano. É o caso destas pinturas e desenhos que evocam o dia 1 de Novembro, dia de todos os santos. É de tradição nas aldeias de Portugal que as mulheres, neste dia, cuidem das campas dos familiares e amigos falecidos. Trata-se de um trabalho exercido pelas mulheres, que a artista interpreta, recorrendo a estes rituais de forma descontextualizada, salientando apenas posições e gestos, abstraídos de qualquer referência espacial. Nesta descontextualização, o rito da decoração das campas com flores confunde-se com o trabalho da lavoura. Somos levados a tomar os ritos dos defuntos, da morte, pelos ritos da terra, da vida. Por entre estas pinturas de sentimento metafísico, nascidas de uma observação silenciosa, uma delas marcou especialmente a artista: “esta mulher, que eu pintei várias vezes, estava a remexer na terra com um ar concentradíssimo. Passado pouco tempo ela morreu e foi para essa mesma campa que tinha enfeitado”. A dimensão dos movimentos e a contenção dos gestos das personagens é aqui explorada em pinceladas rudes, com uma grande intensidade de luz e de texturas num ambiente de silêncios expressivos.
Metamorfoses
Não é só nos rostos que podemos testemunhar as metafóricas metamorfoses de seres. Sendo os humanos como bichos, não é só a passagem do tempo o que estas metamorfoses evocam, mas também histórias e traços de personalidade que caracterizam as personagens. Nas rudes faces pintadas e desenhadas por Graça Morais, o que lhe interessa é a transmissão de uma sensação, de uma expressão, um sentimento, uma aura ou atmosfera. É a representação de uma intensidade, e não um retrato, aquilo que nos é oferecido. Porque Graça Morais não retrata. Recria. Retém as imagens de que se apropria e que imprime na sua imaginação e é com elas que trabalha cenas e situações que pertencem já ao domínio da sua criação.
“Por vezes olho para as pessoas e vejo bichos, sobretudo em lugares onde a minha memória activa o que vai vendo”, diz a Graça Morais. Os gafanhotos são insectos que possuem uma carga simbólica, tal como todos os seres transmutados dentro das pessoas que pinta. “Tenho uma caixinha cheia de gafanhotos porque em todos os Verões há sempre um que me entra em casa. Sempre ouvi falar do gafanhoto como um insecto ligado às pragas. Mesmo na Bíblia, sabemos do papel do gafanhoto como um bicho traiçoeiro que devasta tudo por onde passa. Comecei a desenhar gafanhotos e a sobrepor figuras numa atitude de trabalhos agrícolas. Imagino que as pessoas podem ser como gafanhotos, não a destruir mas a trabalhar e a produzir”. No recurso à representação de elementos pertencentes ao meio natural, como ramos de árvores, flores, legumes, batatas ou frutos, há que notar que estes são já objectos elevados ao estatuto de ícones. É através deles que sabemos que a criadora está a referir-se a uma altura específica do ano. Não são narrativas mas sim referências que nos permitem organizar memórias de uma possível história mental. “É o meu lado mais solar e simples”, diz. “Essas imagens muito leves evocam os dias quentes. Mas não há inocência nisso. Faço-o para marcar um tempo. Há um calendário ligado a um diário que faço em livros que vou escrevendo e, de vez em quando, há uma página em que desenho uma dessas representações da natureza. É um livro de horas”. Um registo da passagem do tempo ligado à sua vivência e transmutável na vivência de cada um.
A passagem do tempo é vida e morte e é uma dimensão quase sempre presente na pintura de Graça Morais. No meio rural, isto acontece com uma aceitação maior, da mesma maneira como as flores murcham e as árvores se despem. A morte é, no campo, uma realidade tão intensa e dramática como em qualquer outra parte, mas existe aí, sentimos no discurso plástico e psicológico da artista, um assumir mais vincado do corpo e da sua mortalidade.
Erotismo Proibido, Corpo Urgente
Uma série de dez pequenos desenhos em grafite sobre papel (1984) é o testemunho mais íntimo e directo do erotismo que Graça Morais imprime a espaços na sua obra. O erotismo em Graça Morais é um erotismo de alguém que se deixa encantar pela magia do inexplicável. Um corpo à procura de outro corpo, no entendimento da expressão de Maria João Ceitil. Um corpo que não se prende em absoluto às ideias de verdade ou ilusão. É “a dinâmica do desejo, do amor, que nos deixa loucos, encantados, enfeitiçados, irracionais. (...) um corpo à procura de outro corpo: a magia, o feitiço, o poder irracional e absoluto que esse outro corpo exerce sobre nós. A magia do contacto. A magia do afecto.”10 É nessa irracionalidade que se convocam forças do indizível e isso transmite-se na desconstrução formal das figuras que se insinuam de forma mais ou menos directa, mais ou menos sexual.
A dimensão erótica do ser humano em contextos socialmente mais fechados é sempre um mundo quase hermético de mistérios e crenças. É isso que vemos nestes desenhos. “Eu acho que aí o erotismo surge como um exercício de castigo, de recalcamento”, explica a artista. São figuras reprimidas e têm a ver com a inquietação que Graça Morais sentia nesta época em relação à presença do erotismo na arte: “fui criada com os maiores mistérios à volta do sexo e do erotismo, com todas as proibições que a minha educação católica impunha”. O sexo e o erotismo levam consigo conotações negativas, trazendo a nós termos como “magia”, “feitiço”, “encantamento”, dimensões do profano e do herético. “Termos imemoriais que convocam algo de primitivo e de demoníaco”11.
Nestas imagens surrealizantes, não podemos atribuir identidades ou géneros às figuras. Tudo é ambíguo e em devir metamórfico entre o humano e o bicho. Os animais nos quais os seres humanos se vão transformando são aqui seres exóticos como tigres ou leões. Isto relaciona-se com o tipo de imaginação que a pintora desenvolveu aquando dos tempos em que viveu em África. É o lado selvagem e devorador intrinsecamente ligado ao instinto erótico. É quase como tornar visível a urgência do corpo e da irracionalidade que isso implica. “É o erotismo visto como uma expressão do corpo humano que tem de ser reprimida e por isso esses desenhos têm a ver com a impossibilidade do amor, com a impossibilidade de dois corpos se juntarem e com a inquietação que eu sentia nessa altura”. O carácter proibido e a atracção silenciosa que o erotismo exerce é tema que subjaz nestas obras. São cenas densas, carregadas, quase como rituais religiosos. Como se o erotismo fosse não tanto um prazer como uma inevitabilidade que é necessário mas impossível reprimir ao fazer parte da nossa existência.
Outros Temas, Outras Terras
Ainda como testemunha de uma das fases mais marcantes do trabalho de Graça Morais, figura o quadro “Mulher e Guernica”, de 1982, altura em que, após admirar directamente a obra maior de Pablo Picasso, ela pega no drama e “reconta-o como se fosse um mito e naquilo em que por dramatização comum dois povos podem entender-se”12. Trata-se aqui de uma citação directa, mas não apenas uma apropriação, e sim uma criação que recorre a elementos directamente assimilados. Não é uma homenagem a Picasso, mas sim um confronto de universos. E de Picasso, não é pecado roubar. Nada de estranho no contexto de um artista que tanto praticou a chamada “Pintura d’après”13. Mas a Graça Morais não interessa o repescar de ícones da história de arte para reiventar a pintura. Também não é um sentido de actualização, de fazer “Guernica” voltar à contemporaneidade. É mais um sentido de identificação entre estilos e a extracção de novos sentidos subjectivos a partir do seu confronto. É uma realidade animal e agressiva que evoca o drama humano. Estes quadros representam o drama das mulheres num meio rural fechado, os recalcamentos, o erotismo reprimido, a violência doméstica sobre elas exercida em termos físicos ou psicológicos.
No seu trajecto de vida, Graça Morais sente-se uma nómada. É-lhe impossível permanecer muito tempo no mesmo lugar. Na série “Cabo Verde” (1988/89), a pintora revisitou mais uma vez os mitos ligados à natureza e aos animais exóticos, como os répteis (exponenciados numa enorme cobra imaginada). Estes quadros resultaram de uma estadia de dois anos no local, interrompida com idas e voltas. A rudeza, o lado agreste e quase inóspito das paisagens de Cabo Verde, aliados à simpatia e simplicidade das gentes captaram a atenção e despertaram a imaginação da pintora. Paradoxalmente, havia algo comum a Trás-os-Montes no seu relevo acidentado. “A minha pintura de Cabo Verde é pouco sobre o mar, mas muito sobre as pessoas. Fotografei, desenhei e pintei muito...”, explica. São imagens de grandes dimensões com um carácter mágico e com uma paleta cromática composta por tons quentes de terra e fogo. Nelas afrontam-nos enormes animais como cobras e elefantes imaginários, quase monstros resultantes de um espanto do confronto com o exótico que lhe fez lembrar os tempos em que viveu em Moçambique (1956-58). “África é um território que exerce sobre mim um fascínio muito grande e os africanos são pessoas muito doces,
afáveis... muito humanas”, diz. As terras de Cabo Verde originaram uma série quase delirante, talvez numa tentativa de “procurar em Cabo Verde a África que eu perdi na minha infância”.
No ciclo da vida e da morte, carne e corpo são convocados na roda das estações. Graça Morais testemunha e constrói com vivências pessoais a sua fábula, o seu mito. Fica a pintura e a sua reverberação dentro daqueles que se sentirem abertos - e preparados - para a receber.
1 Almeida, Bernardo Pinto. Arte Portuguesa da Pré-História ao Século XX – Vol.19 – O Modernismo II: O Surrealismo e Depois. Fubu Editores, Lisboa, 2009.
2 Chicó, Sílvia. Definição de um Caminho in Graça Morais. Ed. Quetzal/Galeria 111. Lisboa, 1997.
3 Ramos, Ana Filipa. http://www.camjap.gulbenkian.pt/l1/ar%7BD2B27546-03B0-4185-A5F8-0B5ACC3E203C%7D/c%7B3e784961-393d-491b-a950-fbf661dfa281%7D/m1/T1.aspx
4 Pernes, Fernando. In Catálogo Graça Morais. Ed. Sociedade Tipográfica S.A., Lisboa, 1992
5 Titiev, Misha. Introdução à Antropologia Cultural. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1992
6 Lima, Augusto Mesquitela, Introdução à Antropologia Cultural. Editorial Presença, Lisboa, 1991
7 Jabouille, Victor. Iniciação à Ciência dos Mitos. Editorial Inquérito, Lisboa, s/d
8 Salabert, Pere. Pintura Anémica, Cuerpo Suculento. Ed. Laertes, Barcelona, 2003
9 Hess, Walter. Documentos Para a Compreensão da Pintura Moderna. Livros do Brasil, Lisboa, 2001
10 Ceitil, Maria João. Pôr o Corpo a Pensar. ISPA, Lisboa, 2003.
11 idem
12 Azevedo, Fernando. Graça Morais, Ainda o mito e a Graça in Colóquio Artes, número 72, Fundação Calouste Gulbenkian, Março de 1987.
13 Ferreira, António Quadros. Depois de 1950. Edições Afrontamento, Lisboa, 2009.
A pintura de Graça Morais, ícone essencial da cultura portuguesa, constitui uma obra baseada na intuição, ligada aos sentimentos e às emoções. As terras agrestes e as gentes de Trás-os-Montes foram o ventre da gestação do universo pessoal e psicológico que faz parte das imagens que cria. São estas referências íntimas e ancestrais que fundam em si os alicerces de um caminho seguido ao longo dos anos com idas e voltas à fonte, à raiz.
A natureza é o lugar essencial onde Graça Morais apoia a sua verticalidade como artista plástica. A sua aldeia é a realidade à qual sempre regressa numa atitude de agarrar-se e largar-se de si para se entregar à pulsão que desse movimento emerge. Com base nas vivências de um meio outrora fechado sobre si, mas ainda hoje conservador dos seus traços essenciais, Graça Morais constrói um outro mundo, o seu próprio, com todas as referências etnográficas que recolheu durante a vida, mas que, após assimiladas e transpostas, não são já puras. São as suas, comidas, mastigadas e transformadas num organismo ele mesmo produtor de cosmogonias. É desta incerteza de origens, da mistura daquilo que é seu com aquilo que lhe foi dado a ver, viver e sentir, desta confusão referencial, que se cria uma obra particular, identificável com um povo, mas pertencente a um outro domínio que é o da vivência pessoal da criadora, codificada e revelada ao exterior através das suas obras.
O que Graça Morais nos mostra nas imagens que cria não são registos senão das suas incertezas, de momentos e lugares, de pensamentos, ânsias e por vezes raivas. Se bebe dos hábitos, lendas e histórias de Portugal e da região que a viu crescer para partir numa aventura quase mística, não é já do domínio da antropologia o que se sente numa pintura como esta. No entanto, esta ideia não é consensual. Críticos há que têm descrito a obra de Graça Morais como um lento trabalho de redescoberta de um imaginário popular, através de uma “recriação gráfica” e inventariando os rituais da gente popular, chegando mesmo a associar a autora a um registo neo-realista com uma vertente antropológica, que busca as raízes de uma memória rural1. Esta posição é contraposta por outros autores, que verificam no trajecto da pintora o desenrolar de um conjunto de idiossincrasias, mais do que de puras observações e registos. Considerar que o que Graça Morais faz é mera antropologia ou etnografia poderá resultar no perigo de reduzir a sua obra a apenas um dos seus elementos constituintes, sendo que a soma destes forma um corpo de trabalho revelador de um mundo próprio, enraizado num contexto rural real e experienciado pela criadora desde a infância. Apesar destas incursões, a recorrência de análises ligadas ao simples carácter de recolha, registo e representação de hábitos e costumes é refutada por opiniões opostas, como a de Sílvia Chicó2, que chega mesmo a situar a obra de Graça Morais dentro de territórios aparentados com os do Surrealismo. Não será uma opinião desconcertante, uma vez que o lirismo, o sabor onírico e até o absurdo, pela associação de díspares realidades, não são estranhos à sua produção artística desde sempre. No entanto, há que notar a ausência de um programa político ou ideológico nesta obra, o que, por si, anula a inscrição da pintora nas referidas correntes artísticas.
Mitos do Inconsciente
“A nossa primeira infância marca-nos a todos e eu fui muito marcada pelo que vivi até aos sete anos nesse lugar [a aldeia de Vieiro], que na altura não tinha electricidade, nem estradas nem telefones”, diz a pintora. “O isolamento era tanto que tudo o que eu vivi foi muito intenso. A relação com o meu pai, com a minha mãe e os meus irmãos, numa família numerosíssima e com aquela gente toda na aldeia, ficaram marcadas profundamente no meu pensamento e no meu coração. Sinto que hoje sou uma privilegiada porque tenho esse mundo dentro de mim.” É da transição das origens rurais e sociais ao lado mais efabulatório e metafórico que cresce a essencialidade da sua obra, também a um nível plástico em que é possível identificar traços fortes de inspiração neo-expressionista. O resultado é a criação de uma terra imaginada, situada “na ligação a um ambiente rural, sagrado, quase mítico, com um campo semântico em que mulheres, gestos, faces, animais, cenas de pastoreio e de caça e matanças se confundem e se agitam numa geografia mental e íntima”3. De facto, falar da obra de Graça Morais é inevitavelmente falar de uma geografia híbrida, que tanto tem de terra e carne como de imaginação e sonho. Uma mitologia uterina, um fio que vem do inconsciente e nos atravessa, embebido da identidade regional, sem que se consiga parar para observar a zona de charneira. E apesar dessa inconstância ontológica, mesmo assim, “penetrar na sua obra é entrar no mito dos rituais que ainda prevalecem no Portugal contemporâneo”, como disse Fernando Pernes4.
Se o mito é, por definição, uma construção social de um povo ou cultura específica, os mitos criados ou recriados por Graça Morais são de outra natureza, são já transformados. Constituem como que mitos pessoais - criações internas a partir de referências intrínsecas não só a si mas também ao meio onde nasceu e cresceu. E daí o afastamento dessa tal visão etnográfica, pois ela é aqui apenas o ponto de partida para uma viagem longa e incerta. Recorrendo assumidamente desta vez a referências da área da Antropologia, Misha Titiev salientava que os mitos são histórias que dizem “principalmente respeito a entidades ou acontecimentos sobrenaturais”5. O mito é como uma linguagem e faz parte do conjunto de sistemas simbólicos de uma comunidade. “Existem na cultura numerosos sistemas simbólicos que resultam por um lado da interacção social e, por outro, de manipulação cultural, constituindo como que uma apropriação do mundo. No entanto, estes sistemas simbólicos não são passíveis de uma leitura universal. Podemos observar que na sua grande maioria, apenas adquirem significado dentro das unidades culturais em que nascem. Na verdade, os símbolos são qualquer coisa de emocional (...)6.
Graça Morais apropria-se dos mitos (principalmente soteriológicos, morais e naturalistas), histórias, imagens e símbolos da sua terra e come-os, torna-os seus. Nesse processo, a pintora afasta-se do mero registo gráfico, da pura etnografia, situando-se no campo entre o sagrado e o profano, o factual e o inventado, o social e o pessoal. Perde-se dos seus suportes religiosos e antigos, afastando-se de referências narrativas para chegar aos territórios da ficção. É uma mitologia que nos envolve naquilo que de mais espiritual temos, enquanto faz uso de elementos simbólicos do quotidiano ou fragmentos de raizes esquecidas no subconsciente. Uma mitologia dentro daquela que é possível descortinar na definição de Victor Jabouille quando refere que o “mito recorda histórias de deuses e de heróis, tem uma tonalidade nebulosa, lírica, agressiva”. Palavras mais do que ajustáveis a uma possível descrição das obras desta artista. Ainda recorrendo a Jabouille, e fazendo o paralelismo com esta pintura, aqui, nestes mundos entre a terra e as gentes evocam-se “sociedades primitivas, grupos reunidos à volta da fogueira, contadores de lendas”7.
Nas imagens que Graça Morais nos apresenta, as narrativas aproximam-se frequentemente dos ritos, como atitudes, gestos e acções de que as suas personagens fazem uso no intuito de atingir uma espécie de harmonia com a natureza, uma via de contacto com o meio visível e invisível. Neste âmbito, e ao contrário do que acontece com os ritos nas culturas tradicionais, o contexto sacrificial simbolizado pela metáfora da caça, não serve já para apaziguar ou captar as entidades metafísicas. Na sua visão, estas actividades acabam por destruir o equilíbrio das forças da vida, mas constroem um padrão de atitudes com os quais uma comunidade se identifica. A pintora ora demonstra, ora questiona a legitimidade de rituais como os da caça e da morte, usando também esta actividade tipicamente masculina como metáfora para a forma como a mulher tem sido tratada nas sociedades fechadas rurais, extrapolando para a generalidade da sociedade em que vivemos. É uma pintora-perdiz, mulher vítima e animal caçado. A perdiz faz parte do vocabulário da sua pintura e aparece como símbolo da dor, do drama, da destruição, da perda... A perdiz e o coelho, como animais que simbolizam a caça, são também animais de extrema beleza. Graça Morais ao pintá-los transforma-os na tristeza da morte e na crueldade da perseguição. Ao aceitar a violência de uma tela que invade o espírito, assistimos à crueldade, à dureza e aos rigores de uma gente.
O Tempo num Rosto
É nas fendas produzidas pelo tempo no rosto seu e de sua mãe que Graça Morais se reconhece como ser mortal e se apercebe da dimensão do tempo. Aí se transformam estes entes num processo efabulatório a que não é alheia a auto-representação quer através dos elementos da cultura da sua região, quer através do seu próprio rosto, ou do rosto da sua progenitora, tal como também nos revemos nos rostos das mulheres da aldeia. É na interpretação destes rostos que a pintora invoca obsessivamente, que se pode encontrar o poder da metáfora, porventura surrealista, do crescimento de raizes ou outras formas vegetais a partir da pele de corpos envelhecidos e ainda assim plenos de vida. São metamorfoses, estas associações tão poéticas como as passagens e transições pelas quais o ser humano caminha ao longo das diferentes fases da vida, principalmente num meio em que existe a calma para se contemplar essas mesmas modificações. Assim, este é também um discurso sobre o corpo, a morte e o envelhecimento físico. Para Pere Salabert, a beleza prodigiosa do corpo humano, baseada na funcionalidade e na limpeza, na ordem e na completude das formas, já não esconde, antes pelo contrário, abre-se a uma deterioração que transformará o belo em monstruoso através da desordem e da deformidade. Entre um e outro extremo? Medeia o espaço que separa o mundo do imundo, a juventude da velhice, a esperança da prostração8. Na pintura de Graça Morais a deterioração da carne não é exactamente um sinal de decadência, mas sim de permanente devir e de
acumulação de experiências transformadas em sábia quietude. É também, e acima de tudo, vida. Assim se repetem expressões carregadas em rostos familiares para a artista e que se relacionam com o observador pela carga de algo inominável a que apenas acedemos superficialmente, mas que intuimos interiormente. Porque, como disse Matisse, “no desenho de um rosto, não interessa a justeza das proporções, mas uma luz espiritual que nele se encontra reflectida”9.
A prática artística de Graça Morais caracteriza-se por uma indefinição permanente, uma constante fuga à catalogação dentro de “ismos”. Até mesmo na série “As Escolhidas” (1995), em que a figuração aparenta ser mais ligada a um registo do quotidiano, nada há de realista ou naturalista. Para além da referida ausência de conotações políticas nestas obras, a visão de Graça Morais sobre estas mulheres é profundamente pessoal, sem agendas ou “recados” sociais ocultos. Nestas mulheres, o que impressiona o observador é a atitude do corpo, os gestos, os movimentos do quotidiano. É o caso destas pinturas e desenhos que evocam o dia 1 de Novembro, dia de todos os santos. É de tradição nas aldeias de Portugal que as mulheres, neste dia, cuidem das campas dos familiares e amigos falecidos. Trata-se de um trabalho exercido pelas mulheres, que a artista interpreta, recorrendo a estes rituais de forma descontextualizada, salientando apenas posições e gestos, abstraídos de qualquer referência espacial. Nesta descontextualização, o rito da decoração das campas com flores confunde-se com o trabalho da lavoura. Somos levados a tomar os ritos dos defuntos, da morte, pelos ritos da terra, da vida. Por entre estas pinturas de sentimento metafísico, nascidas de uma observação silenciosa, uma delas marcou especialmente a artista: “esta mulher, que eu pintei várias vezes, estava a remexer na terra com um ar concentradíssimo. Passado pouco tempo ela morreu e foi para essa mesma campa que tinha enfeitado”. A dimensão dos movimentos e a contenção dos gestos das personagens é aqui explorada em pinceladas rudes, com uma grande intensidade de luz e de texturas num ambiente de silêncios expressivos.
Metamorfoses
Não é só nos rostos que podemos testemunhar as metafóricas metamorfoses de seres. Sendo os humanos como bichos, não é só a passagem do tempo o que estas metamorfoses evocam, mas também histórias e traços de personalidade que caracterizam as personagens. Nas rudes faces pintadas e desenhadas por Graça Morais, o que lhe interessa é a transmissão de uma sensação, de uma expressão, um sentimento, uma aura ou atmosfera. É a representação de uma intensidade, e não um retrato, aquilo que nos é oferecido. Porque Graça Morais não retrata. Recria. Retém as imagens de que se apropria e que imprime na sua imaginação e é com elas que trabalha cenas e situações que pertencem já ao domínio da sua criação.
“Por vezes olho para as pessoas e vejo bichos, sobretudo em lugares onde a minha memória activa o que vai vendo”, diz a Graça Morais. Os gafanhotos são insectos que possuem uma carga simbólica, tal como todos os seres transmutados dentro das pessoas que pinta. “Tenho uma caixinha cheia de gafanhotos porque em todos os Verões há sempre um que me entra em casa. Sempre ouvi falar do gafanhoto como um insecto ligado às pragas. Mesmo na Bíblia, sabemos do papel do gafanhoto como um bicho traiçoeiro que devasta tudo por onde passa. Comecei a desenhar gafanhotos e a sobrepor figuras numa atitude de trabalhos agrícolas. Imagino que as pessoas podem ser como gafanhotos, não a destruir mas a trabalhar e a produzir”. No recurso à representação de elementos pertencentes ao meio natural, como ramos de árvores, flores, legumes, batatas ou frutos, há que notar que estes são já objectos elevados ao estatuto de ícones. É através deles que sabemos que a criadora está a referir-se a uma altura específica do ano. Não são narrativas mas sim referências que nos permitem organizar memórias de uma possível história mental. “É o meu lado mais solar e simples”, diz. “Essas imagens muito leves evocam os dias quentes. Mas não há inocência nisso. Faço-o para marcar um tempo. Há um calendário ligado a um diário que faço em livros que vou escrevendo e, de vez em quando, há uma página em que desenho uma dessas representações da natureza. É um livro de horas”. Um registo da passagem do tempo ligado à sua vivência e transmutável na vivência de cada um.
A passagem do tempo é vida e morte e é uma dimensão quase sempre presente na pintura de Graça Morais. No meio rural, isto acontece com uma aceitação maior, da mesma maneira como as flores murcham e as árvores se despem. A morte é, no campo, uma realidade tão intensa e dramática como em qualquer outra parte, mas existe aí, sentimos no discurso plástico e psicológico da artista, um assumir mais vincado do corpo e da sua mortalidade.
Erotismo Proibido, Corpo Urgente
Uma série de dez pequenos desenhos em grafite sobre papel (1984) é o testemunho mais íntimo e directo do erotismo que Graça Morais imprime a espaços na sua obra. O erotismo em Graça Morais é um erotismo de alguém que se deixa encantar pela magia do inexplicável. Um corpo à procura de outro corpo, no entendimento da expressão de Maria João Ceitil. Um corpo que não se prende em absoluto às ideias de verdade ou ilusão. É “a dinâmica do desejo, do amor, que nos deixa loucos, encantados, enfeitiçados, irracionais. (...) um corpo à procura de outro corpo: a magia, o feitiço, o poder irracional e absoluto que esse outro corpo exerce sobre nós. A magia do contacto. A magia do afecto.”10 É nessa irracionalidade que se convocam forças do indizível e isso transmite-se na desconstrução formal das figuras que se insinuam de forma mais ou menos directa, mais ou menos sexual.
A dimensão erótica do ser humano em contextos socialmente mais fechados é sempre um mundo quase hermético de mistérios e crenças. É isso que vemos nestes desenhos. “Eu acho que aí o erotismo surge como um exercício de castigo, de recalcamento”, explica a artista. São figuras reprimidas e têm a ver com a inquietação que Graça Morais sentia nesta época em relação à presença do erotismo na arte: “fui criada com os maiores mistérios à volta do sexo e do erotismo, com todas as proibições que a minha educação católica impunha”. O sexo e o erotismo levam consigo conotações negativas, trazendo a nós termos como “magia”, “feitiço”, “encantamento”, dimensões do profano e do herético. “Termos imemoriais que convocam algo de primitivo e de demoníaco”11.
Nestas imagens surrealizantes, não podemos atribuir identidades ou géneros às figuras. Tudo é ambíguo e em devir metamórfico entre o humano e o bicho. Os animais nos quais os seres humanos se vão transformando são aqui seres exóticos como tigres ou leões. Isto relaciona-se com o tipo de imaginação que a pintora desenvolveu aquando dos tempos em que viveu em África. É o lado selvagem e devorador intrinsecamente ligado ao instinto erótico. É quase como tornar visível a urgência do corpo e da irracionalidade que isso implica. “É o erotismo visto como uma expressão do corpo humano que tem de ser reprimida e por isso esses desenhos têm a ver com a impossibilidade do amor, com a impossibilidade de dois corpos se juntarem e com a inquietação que eu sentia nessa altura”. O carácter proibido e a atracção silenciosa que o erotismo exerce é tema que subjaz nestas obras. São cenas densas, carregadas, quase como rituais religiosos. Como se o erotismo fosse não tanto um prazer como uma inevitabilidade que é necessário mas impossível reprimir ao fazer parte da nossa existência.
Outros Temas, Outras Terras
Ainda como testemunha de uma das fases mais marcantes do trabalho de Graça Morais, figura o quadro “Mulher e Guernica”, de 1982, altura em que, após admirar directamente a obra maior de Pablo Picasso, ela pega no drama e “reconta-o como se fosse um mito e naquilo em que por dramatização comum dois povos podem entender-se”12. Trata-se aqui de uma citação directa, mas não apenas uma apropriação, e sim uma criação que recorre a elementos directamente assimilados. Não é uma homenagem a Picasso, mas sim um confronto de universos. E de Picasso, não é pecado roubar. Nada de estranho no contexto de um artista que tanto praticou a chamada “Pintura d’après”13. Mas a Graça Morais não interessa o repescar de ícones da história de arte para reiventar a pintura. Também não é um sentido de actualização, de fazer “Guernica” voltar à contemporaneidade. É mais um sentido de identificação entre estilos e a extracção de novos sentidos subjectivos a partir do seu confronto. É uma realidade animal e agressiva que evoca o drama humano. Estes quadros representam o drama das mulheres num meio rural fechado, os recalcamentos, o erotismo reprimido, a violência doméstica sobre elas exercida em termos físicos ou psicológicos.
No seu trajecto de vida, Graça Morais sente-se uma nómada. É-lhe impossível permanecer muito tempo no mesmo lugar. Na série “Cabo Verde” (1988/89), a pintora revisitou mais uma vez os mitos ligados à natureza e aos animais exóticos, como os répteis (exponenciados numa enorme cobra imaginada). Estes quadros resultaram de uma estadia de dois anos no local, interrompida com idas e voltas. A rudeza, o lado agreste e quase inóspito das paisagens de Cabo Verde, aliados à simpatia e simplicidade das gentes captaram a atenção e despertaram a imaginação da pintora. Paradoxalmente, havia algo comum a Trás-os-Montes no seu relevo acidentado. “A minha pintura de Cabo Verde é pouco sobre o mar, mas muito sobre as pessoas. Fotografei, desenhei e pintei muito...”, explica. São imagens de grandes dimensões com um carácter mágico e com uma paleta cromática composta por tons quentes de terra e fogo. Nelas afrontam-nos enormes animais como cobras e elefantes imaginários, quase monstros resultantes de um espanto do confronto com o exótico que lhe fez lembrar os tempos em que viveu em Moçambique (1956-58). “África é um território que exerce sobre mim um fascínio muito grande e os africanos são pessoas muito doces,
afáveis... muito humanas”, diz. As terras de Cabo Verde originaram uma série quase delirante, talvez numa tentativa de “procurar em Cabo Verde a África que eu perdi na minha infância”.
No ciclo da vida e da morte, carne e corpo são convocados na roda das estações. Graça Morais testemunha e constrói com vivências pessoais a sua fábula, o seu mito. Fica a pintura e a sua reverberação dentro daqueles que se sentirem abertos - e preparados - para a receber.
1 Almeida, Bernardo Pinto. Arte Portuguesa da Pré-História ao Século XX – Vol.19 – O Modernismo II: O Surrealismo e Depois. Fubu Editores, Lisboa, 2009.
2 Chicó, Sílvia. Definição de um Caminho in Graça Morais. Ed. Quetzal/Galeria 111. Lisboa, 1997.
3 Ramos, Ana Filipa. http://www.camjap.gulbenkian.pt/l1/ar%7BD2B27546-03B0-4185-A5F8-0B5ACC3E203C%7D/c%7B3e784961-393d-491b-a950-fbf661dfa281%7D/m1/T1.aspx
4 Pernes, Fernando. In Catálogo Graça Morais. Ed. Sociedade Tipográfica S.A., Lisboa, 1992
5 Titiev, Misha. Introdução à Antropologia Cultural. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1992
6 Lima, Augusto Mesquitela, Introdução à Antropologia Cultural. Editorial Presença, Lisboa, 1991
7 Jabouille, Victor. Iniciação à Ciência dos Mitos. Editorial Inquérito, Lisboa, s/d
8 Salabert, Pere. Pintura Anémica, Cuerpo Suculento. Ed. Laertes, Barcelona, 2003
9 Hess, Walter. Documentos Para a Compreensão da Pintura Moderna. Livros do Brasil, Lisboa, 2001
10 Ceitil, Maria João. Pôr o Corpo a Pensar. ISPA, Lisboa, 2003.
11 idem
12 Azevedo, Fernando. Graça Morais, Ainda o mito e a Graça in Colóquio Artes, número 72, Fundação Calouste Gulbenkian, Março de 1987.
13 Ferreira, António Quadros. Depois de 1950. Edições Afrontamento, Lisboa, 2009.
Sem comentários:
Enviar um comentário