quarta-feira, 20 de outubro de 2010

João Queiroz - A paisagem como pintura


A pintura de João Queiroz não é uma obra de espectáculo, mas consegue deslumbrar. Não é puramente figurativa mas mantém a representação. Não nos diz coisas explícitas, mas insinua que estamos a observar cenas da natureza. O observador que se deixa sugar pelas cores e traços marcados pela tinta e pelo corpo numa evidência de gestos, deixa progressivamente de se situar apenas e só na paisagem à sua frente. A cena dilui-se, torna-se um objecto visual, apenas e só, em toda a sua gloria.

“A percepção da paisagem é uma 'evidência', uma injunção implícita, e é evidente que a paisagem é bela. Nada se equipara à bela paisagem. Ela é dada, apresentada aos sentidos como um usufruto, um repouso.” Quando Anne Cauquelin escreveu este trecho no livro A Invenção da Paisagem parecia referir-se à pintura de João Queiroz. Eis que no epicentro frenético da cidade, aparece uma exposição para ver devagar. “Silvae” é uma antologia do trabalho de João Queiroz em desenho e pintura. Começa em 1992 e vai até à actualidade, organizada como um percurso pouco estruturado, em que as obras se reunem por afinidades e não por épocas. O início da exposição tem como assunto aglutinador os seus primeiros trabalhos, associados a experiências relacionadas com a sua actividade como professor. São pesquisas formais e exercícios entre a imagem e a linguagem verbal. Piscadelas de olho irónicas à representação na arte e desenhos que indagam a influência da palavra no desenho. A paisagem, aqui ainda incipiente, é já um tema importante que leva às pesquisas posteriores. A paisagem é, de facto, o tema único que João Queiroz não mais abandonou até hoje. “A paisagem surge da preocupação em compreender como é que o nosso corpo vê um acontecimento e como é que nós escolhemos esse acontecimento entre os outros, como agregamos as coisas para constituir um objecto... como é que a linguagem leva a fazer isso.”, explica o artista, introduzindo o tom geral da exposição.

Na pintura de João Queiroz, não é possível determinar rigorosamente cada um dos objectos representados (uma árvore, um ribeiro, ervas e folhas...) tudo se dilui e interpenetra, embora a sensação final no observador componha a imagem reconhecível de uma paisagem. Nestas imagens é importante a carnalidade da tinta, as espessuras, as escalas, as velocidades que o artista imprimiu na tela. Tudo isto só se revela com a presença directa do observador. Qualquer reprodução aniquila esta experiência. É preciso ver como as obras mudam conforme as dimensões, os suportes e as técnicas, sejam elas em óleo, aguarela ou outras.

O pintor guarda na tela e no papel o registo posterior e subjectivo das sensações guardadas no corpo depois da observação de um cenário natural. As obras de João Queiroz são para ver com o corpo todo, usando as coordenadas espaciais que advêm da memória física e da nossa própria consciência corporal. Após uma demorada observação estas imagens deixam de ser paisagens, já são outra coisa. “São pintura”, diz o artista. São objectos para ver. Há assim como que um esvaziamento de sentido para criar uma experiência estética e plástica. É assim que a pintura (sobre)vive e renova o seu interesse. Como diz Queiroz, “se esta se esgotar num jogo de símbolos e sinais, na sua sucessiva interpretação e reinterpretação, tornar-se-à um objecto cultural no sentido mais bolorento do termo, e não mais parte fundamental da criação de novas sensibilidades e novos modos de ver. Não acredito que isso tenha de ser assim. Por isso estou atento à pintura”.
Miguel Matos

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