quarta-feira, 13 de outubro de 2010

São Trindade - A Fotografia posta a nu



Os mitos são meios de o homem se conhecer a si próprio. Desde sempre que a arte se inspirou em lendas e mitos como pontos de partida para criações pictóricas. Os mitos constituem, muitas vezes, pilares ancestrais mais ou menos sólidos, mais ou menos credíveis, onde assenta a cultura de alguns povos. “Referente cultural, o mito actualiza-se, permanece vivo; por vezes adormecido, pode surgir numa erupção violenta e construtiva”, diz Victor Jabouille no livro Iniciação à Ciência dos Mitos.
A exposição “The Tailor” que a fotógrafa São Trindade apresenta na galeria VPF Cream Art, resgata o mito medieval de Lady Godiva que, embora longínquo geográfica e temporalmente, parece fazer sentido nos tempos que correm. Mas não é só de histórias e mitos que esta série fala. Ela discursa sobre os poderes da fotografia, sobre a construção de uma imagem e de como a fotografia, o desenho e a pintura se podem confundir sem nunca se tocarem.
São Trindade (Coruche, 1960) tem desenvolvido actividade na captação de imagens através da câmara fotográfica.
Por isso é uma surpresa saber que é licenciada em pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Quem visita esta exposição percebe imediatamente a relação.

Mas comecemos por saber quem foi Lady Godiva e o que tem ela a ver com o assunto em questão. Diz a lenda que, na primeira metade do século XI, a bela Lady Godiva defendeu o povo de Coventry (Inglaterra), que sofria com os altos impostos do marido, o Duque Leofric.
Lady Godiva apelou tanto que ele lhe propôs um desafio como condição: que ela cavalgasse nua pelas ruas de Coventry. Ela aceitou e mandou todos os moradores fecharem-se em casa aquando da sua passagem. Somente uma pessoa (Peeping Tom) ousou olhá-la e por isso ficou cega. Leofric retira os impostos, cumprindo assim a promessa.
Voltando a Lisboa, passados mil anos, entramos numa sala com um cavalo em papier-maché e gesso no centro. Olhamos para trás e vemos Lady Godiva imortalizada em fotografia, numa imagem que se refere à icónica pintura realizada por John Collier em 1897. No entanto, se repararmos no pormenor da sela, as iniciais “ST” denunciam que Lady Godiva nesta foto é São Trindade, em auto-retrato. À volta, tudo o que se segue é um conjunto de imagens fotográficas que regista os processos de concepção e construção do cavalo.
Há alguns pontos, de entre muitos, a salientar como temas nesta exposição. Primeiro, o mito de que já se falou (será que São se propõe cavalgar nua por Lisboa se o governo baixar os impostos?). Segundo, a questão do voyeur, pela referência a Peeping Tom e sendo o acto de espreitar, de ver de forma encoberta, um dos princípios fundadores da fotografia. Terceiro: a noção de espaço. São vários os símbolos e ícones que São introduziu nestas imagens de modo a contar histórias da imagem. Entre eles há um espelho que amplia o espaço e duplica a virtualidade da fotografia. O espaço fotografado é o ateliê onde foi construído este cavalo, mas que alude ao ateliê como local da criação, de realização.
O registo a preto e branco salienta o desenho imposto nas imagens, um desenho feito de contastes e linhas marcadas. As imagens tornam-se cada vez mais abstractas e incorporam uma bidimensionalidade que nos faz hesitar entre a fotografia e o desenho. “The Tailor” é uma série de obras cerebrais, mas que ainda assim consegue encantar o observador.
Do mito de Lady Godiva aos mitos da imagem, São Trindade traz à VPF Cream Art uma das melhores exposições aí já realizadas. Convoca a técnica artística, a história de arte e a mitologia. A análise dos mitos, conclui Victor Jabouille, “permite, além da apreensão do homem individualizado, compreender o homem enquanto ser gregário, isto é, como sociedade. E são os mitos actuantes nas várias épocas que especificam o conhecimento da sociedade.”

Miguel Matos

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