domingo, 23 de maio de 2010

Catarina Saraiva - Os Espelhos Impossíveis


“O reflexo perguntou ao reflexo quantos reflexos o reflexo tem e o reflexo respondeu ao reflexo que o reflexo tem tantos reflexos quantos reflexos o reflexo tem”. Este quebra-cabeças em forma de lengalenga é a frase que recebe quem entra na Galeria Módulo para ver a exposição “Espelho (meu)” de Catarina Saraiva. São letras negras que formam palavras. Palavras essas feitas em pasta de enchimento e tecido, que introduzem um pensamento sobre o corpo feminino e não só.

Catarina Saraiva expõe individualmente desde 2004 e fez o curso de pintura na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, mas nunca exerceu esta técnica, pois os seus interesses plásticos cruzaram-se logo com a sua anterior formação na área da moda. Das técnicas e meios que aprendeu, surgiu um território híbrido que se aparenta mais com a escultura. Situa-se, ainda que não intencionalmente, no âmbito das chamadas soft sculptures (por serem compostas frequentemente com tecidos e materiais de enchimento), numa senda que tem como decana fundamental a artista francesa Annette Messager, mas que em Portugal encontra seguidores em artistas como Joana Vasconcelos, João Pedro Vale, Pedro Valdez Cardoso, Eva Alves e a própria Catarina Saraiva.

Reflectindo agora sobre este conjunto de obras: o reflexo é uma preocupação própria da pintura, o corpo é uma preocupação própria da moda. Em todo o caso, a arte ocupa-se de ambas as questões e os objectos e instalações criados por Catarina Saraiva discursam desde sempre sobre as questões ligadas à imagem e ao corpo. Particularmente acerca daquilo que vemos sobre a nossa figura num espelho, objecto que nos devolve a nossa imagem e sem o qual não saberíamos o nosso aspecto. Mas a imagem que nos é dada, muitas vezes acaba por ser distorcida já não pelo espelho e sim pela nossa mente. “O reflexo pode ser outra coisa... outro corpo”, diz a artista. Talvez por isso os espelhos de Catarina sejam reflexos impossíveis. Eles recusam a sua função. Não servem como material reflector e com isso são objectos de ansiedade. Ao ocultar a face reflectora do espelho, a artista nega a imagem.

Numa outra obra em registo vídeo, Catarina Saraiva observa-se ao espelho e pinta as suas próprias feições sobre ele, como que a negar a realidade dos fragmentos do seu rosto. Ela pinta o seu reflexo, ficciona-o e anula o carácter temporário da imagem reflectida. A imagem é como que agarrada, mesmo após o desaparecimento da personagem em questão. Ao mesmo tempo, mais uma vez, é negada a função do espelho daí em diante.

Nestes espelhos que evocam a forma tradicional de um objecto de toilette, a beleza é questionada e a construção da identidade é anulada. A desconstrução é a palavra mote para Catarina Saraiva, pois ela apropria-se dos objectos que usamos até de forma íntima para lhes retirar a função e com isso questionar a sua existência. Nesta exposição, a abordagem do tema habitual da artista é mais subtil e emprega ferramentas novas dentro do seu percurso. É o caso da instalação sonora com potes de barro em que, lá dentro de cada um, ecoam vozes que dizem: “os teus olhos não são como duas pedras”. Frase que ganha sentido quando se olha em frente e se vê a representação de um espelho como num mosaico antigo, composto por pequenas pedras. Pedras macias, para que não se parta o espelho de quem não gosta do seu reflexo...


Miguel Matos

“Espelho (meu)” está patente na Módulo - Centro Difusor de Arte (Calçada dos Mestres, 34-A), até 5 de Junho. Aberta de terça a sábado (excepto feriados) das 15.00 às 20.00. A entrada é gratuita.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Gabriel Garcia - Palcos de sonho e pesadelo


A Anita dos livros infantis é afinal um travesti, devota de Nossa Senhora de Fátima, e serve leitões ao fim-de-semana. Se não acredita, comprove-o na exposição “Anita no País dos Mentirosos”, de Gabriel Garcia. Tudo começou na montra de um alfarrabista onde uma capa de um dos livros da Anita chamou a atenção do artista. Partindo desta imagem, faltava o contexto para começar a trabalhar. E não há melhor contexto do que o País dos Mentirosos, afinal de contas, o país onde todos nós vivemos, começando pela classe política, mas não só. Como explica Gabriel Garcia: “a fantasiar acabamos por ser mentirosos. A mentira permite voar por cima das nuvens e viajar ao encontro da fantasia e é isso o que eu tenho vindo a desenvolver nos meus trabalhos.”

A história original, a do país das maravilhas, traz consigo o jogo entre uma terra de fantasia e local de gente má. Como as mentiras, que podem ser boas ou más. Há sempre um ambiente teatral, burlesco e circense nestas imagens. Gabriel Garcia inventa personagens grotescas que pinta e depois liberta, engarrafando-as literalmente em pequenos frasquinhos que são depois pendurados no tecto da galeria.

Gabriel não planeia meticulosamente cada imagem que cria, preferindo pintar ou desenhar como se fosse uma escrita automática. Nesse método, evoca André Breton, o papa do surrealismo, como influência teórica no seu trabalho. Mas os territórios perigosos do surrealismo são difíceis de percorrer sem consequências. Aliás, mesmo Breton disse uma vez que os campos de prospecção do inconsciente, como a escrita automática e o sono hipnótico, “são muito difíceis de circunscrever. Assim que se tenta fixar-lhe os limites, impõe-se uma grande margem de flutuação, de incerteza. São terrenos movediços, sobre os quais nunca há a certeza de se ter pé.” (Entrevistas, Ed. Salamandra) Assim, apesar de utilizar as ferramentas inexactas propostas por Breton, Gabriel esclarece: “eu não sou surrealista. Quando falo de surrealismo, não o faço no sentido dos ideais e da concepção de vida que os surrealistas defendem. A questão do surrealismo vem do lado onírico, automático e inconsciente que utilizo no meu trabalho. Às vezes usar mais palavras para explicar as minhas obras não vale a pena. É nas entrelinhas que se contam as histórias.” E é nas entrelinhas que começa a operar a imaginação de cada observador que se plante em frente a uma destas pinturas.

Nos tresloucados sonhos pintados desta exposição, há uma permanente alusão aos contos infantis, mas aqui o pintor restitui--lhes a ironia e crueldade originais, o que permite uma identificação com o mundo adulto, mas com conteúdo retirado com uma pinça directamente ao inconsciente de origens recônditas e infantis. São a fantasia das crianças e a mentira dos adultos que se cruzam e confundem. Tudo isto é enquadrado por um cenário teatral, como as paisagens em cores berrantes que fazem lembrar os cicloramas das peças de teatro. A disposição das personagens é também estudada dentro da composição de cada quadro como num palco. Um lado grotesco na fisicalidade de cada personagem é o toque adicional para transformar tudo isto num espectáculo circense.

As obras de Gabriel Garcia assumem as influências das criaturas de Bosch, dos ambientes, cores e cenários de Brueghel, assim como das máscaras de James Ensor. Quando se desloca para o desenho, lembra Mário Botas. Mas essas influências não fazem da pintura de Gabriel Garcia uma colagem ou pastiche. São sinais no caminho que vai levar a paragens muito diferentes. Talvez sejam mentira, mas são certamente o outro lado da fantasia.

“Anita no País dos Mentirosos” está patente na Galeria São Bento (R. do Machadinho, 1) de sexta a 30 de Junho. Aberta de terça a sexta das 13.00 às 20.00 e sábados das 15.00 às 20.00. A entrada é gratuita.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Teresa Gonçalves Lobo - Instinto


“Algures dentro de mim

uma nascente.

a merecê-la que cântaro?

Que canto?


Sinuoso

vertente



precário

o trilho das palavras


Ador transborda

a sede permanece.”


Rosa Lobato de Faria1


As linhas que percorrem estas superfícies vertem sinuosas como uma intuição desenhada por escrito. É imagem que desliza sem a mediação teórica de quem a premedita. Inscrevendo-se a obra de Teresa Gonçalves Lobo dentro do rumo do instinto, como seria possível descrever o seu corpo de trabalho recorrendo a teorias? Quem, neste mundo, pede justificações a um músculo para que ele se mova? Quem pede licença antes de soltar um pensamento? Estes traços de sentimentos incertos vivem dessa volatilidade. São desenhos do corpo que falam sobre os instintos, numa obra de cariz profundamente gestual, que descende da abstracção lírica para encontrar um rumo próprio.

As íntimas geografias apresentadas por Teresa Gonçalves Lobo são correntes no seu trajecto, como água na fluidez de quem desenha como quem respira. E, mais uma vez, não se pede autorização aos pulmões para se engolir uma golfada de ar e depois soltá-la já disforme, quente da passagem pelo corpo. Tal como este texto, que faço por ser escrito o mais espontaneamente que consigo, querendo fazer eco da Teresa quando frente ao papel com os materiais riscadores. Falando com a artista, percebe-se que é para si urgente a actividade de criar. Dessa urgência emerge a inconsciência que faz destes trabalhos registos emotivos, reflexos puros das camadas mais profundas da mente. Como uma automática escrita (embora longe dos preceitos surrealistas) que, timidamente, deixa entrever matizes mais ou menos profundos pela intensidade das marcas feitas no papel.

Há nestas peças um silêncio expressivo omnipresente que convida à reflexão e à contemplação. Talvez as origens insulares de Teresa Gonçalves Lobo sejam perceptíveis na poesia simples e recatada das suas obras. Entre sinuosas curvas quase vegetais e linhas serpenteadas de rios correntes, é de elementos essenciais que se faz a sua prática artística, numa contenção cromática que reflecte um isolamento com propósitos de recolha interior. Nos pretos da grafite e da tinta-da-china sobre o branco imaculado do espaço plano do papel surgem por vezes vermelhos de intensa vida ou verdes de pura energia. Da maioria dos seus desenhos surge uma sensação de crescimento, como seres diáfanos que se inclinam e prolongam em direcção à luz. Mas, por outro lado, são formas orgânicas que possuem as suas raízes em crescimento para a terra e, portanto, à obscuridade, à interioridade. Recolhimento e conhecimento. Em ambos os casos, há uma direcção apontada à necessidade criativa, esteja ela sintonizada com as forças da luz ou da escuridão. São sentimentos à solta. Contudo, não é absolutamente caótica a criação de Teresa Gonçalves Lobo, o que se torna evidente notando a organização de linhas em confluência. Na tentativa de extrair energia de um corpo pensante, acontece naturalmente um desenho com a tranquilidade do silêncio. Há nisto como que uma intenção pouco clara de organização espacial da mente. Tornar plástico um estado de espírito sem ceder à tentação da figuração.

Teresa não tem medo de errar nesta entrega de si. Na verdade, como representar o desejo e o instinto sem cair em erro por não os conhecermos na totalidade? O erro faz parte destes caminhos e vive dentro de uma subjectivação assumida de quem desenha “coisas que se pensam em mim”, como dizia Maria João Ceitil. “Pôr o corpo a falar, pôr o desejo a falar, é abrirmo-nos à possibilidade do sentido daquilo que parece ser sentido. (...) O rasto que o meu pensamento segue é o da descoberta de um movimento no pensamento: pensar é pensar e ser pensado. O movimento de vai-e-vem. Espaços dialécticos da subjectividade”2.

O trabalho de Teresa Gonçalves Lobo, como o de todos os artistas contemporâneos não vive sem algo que o precedeu. Possui, não na sua génese, mas na sua contextualização, como referência, o trabalho de Ana Hatherly, no que diz respeito à ligação com as caligrafias por si exploradas. Também, a espaços, é possível identificar cruzamentos com alguma obra de Eurico Gonçalves. No entanto, percebe-se a autonomização do seu discurso. Abandonando progressivamente os iniciais alfabetos, e assim distanciando-se da tradição gráfica protagonizada por Soulages. Há um lado performático nestas linhas. O que é inegável também é a feminilidade destes traços, se entendermos a sensibilidade à flor da pele como característica definidora da feminilidade. O que vemos aqui é o reflexo do movimento instintivo de uma mão que corre a superfície sem pressas, sem poderes nem regras. De facto, “é emprestando o seu corpo ao mundo que o pintor transmuta o mundo em pintura”, como disse Merleau-Ponty3. Sem noções pré-estabelecidas ou intenções programáticas, Teresa Gonçalves Lobo segue as linhas que, saindo de si, canalizadas, só as conhece depois de riscadas através do seu corpo.


Miguel Matos

1Faria, Rosa Lobato, Poemas Recolhidos e Dispersos. Roma Editora, Lisboa, 1997

2Ceitil, Maria João. Pôr o Corpo a Pensar. ISPA, Lisboa, 2003

3Ponty, Merleau. O Olho e o Espírito. Vega, Lisboa, 2006

terça-feira, 27 de abril de 2010

Pedro Cabrita Reis e Sandro Resende - Isto não é arte freak


Dentro do hospital psiquiátrico Júlio de Matos, há um pavilhão que é, desde há cinco anos, um lugar experimental de arte contemporânea. Chama-se Pavilhão 28 e exibe regularmente exposições nas quais participam conjuntamente artistas emergentes, consagrados e outros que são doentes psiquiátricos. Sandro Resende é o mentor do projecto e esta semana, num outro pavilhão, o 27, inaugura mais uma etapa. A exposição chama-se “Os Outros” e junta no mesmo espaço os seguintes nomes: Artur Moreira, Francisco Gromicho, Francisco Guerra, Marta Sales, Walter Barros e... Pedro Cabrita Reis. Todos eles têm em comum o facto de serem artistas, mas Cabrita Reis é o único que não é diagnosticado com uma doença mental e foi ele que serviu de modelo para os desenhos que agora se expõem, frente-a-frente com as suas esculturas.

Os doentes e alunos do ateliê de arte (terapia ocupacional) de Sandro Resende fazem um percurso coerente e continuado que já extrapolou as suas actividades, com exposições na Galeria de São Bento, Gulbenkian, Culturgest e Sala do Veado. O estigma de serem doentes é factor que não entra no conceito dos projectos do P28 pois, como diz Sandro Resende, “ao pensar que estou a quebrar esse estigma, estou, pelo contrário, a criá-lo”.


Quem são os artistas que participam nesta exposição? Fazem-no por uma questão de tratamento?

Sandro Resende: São pessoas que fazem a sua vida normal e vêm todos os dias pintar aqui. É como uma pequena escola em que não há notas, mas em que se aprende a fazer pintura, fotografia, vídeo e outras coisas. Não é terapêutico, porque se um artista vê que o seu trabalho não tem aceitação isso é frustrante como para qualquer um. Querem trabalhar e a sua arte faz parte de um processo pessoal.


Como se deu o encontro com Pedro Cabrita Reis e porquê a escolha desta abordagem tão primordial como o retrato?

Pedro Cabrita Reis: Ao aceitar o convite que o Sandro me dirigiu, optei por criar uma situação-base porque, no fundo, uma aula de desenho de modelo é um acontecimento que está ligado à simplicidade, ao ponto de partida. Uma forma de começarmos todos a partir do zero, encenando a noção de desenhar um modelo que estamos a ver. Não me interessava fazer um workshop em relação ao meu trabalho. A minha ambição interior era estabelecer uma metodologia identitária entre mim e eles.


O contacto entre todos deu-se apenas na sessão do exercício de desenho ou houve encontros prévios?

PCR: Tudo aconteceu durante a sessão em que inclusive havia elementos dos media presentes. Havia pessoas a desenhar enquanto eu falava com outras e isso fazia parte. Tudo se deu nessas horas: a proposta, o desenvolvimento do trabalho e o encontro com a opinião pública. Foi um bolo compacto com um carácter performativo.


A escultura criada no espaço pauta-se por um relacionamento com as obras dos doentes ou pelo seu confronto?

PCR: O meu trabalho, ao longo dos anos, tem registado uma presença constante de elementos de luz. Especificamente luzes fluorescentes que para mim não funcionam no sentido de iluminação, mas como matéria, é como um tijolo ou uma barra de ferro. Pareceu-me oportuno que o meu trabalho fosse trazido para aqui no sentido de criar uma participação no projecto como autor, assim como eles, que fazem isto todos os dias. Nunca seria possível criar algo condescendente em relação ao entendimento da experiência diária destas pessoas. Concebi uma peça composta por unidades de luz e que se espalham pelas salas e pontuam a minha relação com os desenhos deles.


Ou seja, isto é um enorme retrato do Pedro Cabrita Reis feito por outros e pelo próprio...

PCR: Podes mesmo chamar retrato de grupo com luzes. O que é engraçado é que estas peças de luz (radicalmente simples e frágeis) vão ser vistas como objecto e reflectidas nos vidros das molduras, porque estão em transparência sobre os desenhos. Não constituem um entrave na observação. Os desenhos passam a fazer parte da escultura e vice-versa, numa peça única.


E isto é um projecto paralelo ao seu percurso ou integra-se como um fio condutor?

PCR: Não sei dizer com clareza. Tendo a acreditar que isto é uma coisa que eu inscrevo no meu processo. Não considero um desvio nem um fait-divers. Tive sempre ocasiões em que trabalhei em conjunto com outras pessoas. Não houve nisto curiosidade mórbida nem de entretenimento cultural. Tem havido com esta exposição uma tempestade mediática que me incomoda. É óbvio que isto tem um interesse mediático forte, gera curiosidade e, inerentemente, gera a chegada rápida e em catadupa dos agentes de informação. O que revela duas coisas: uma é que este trabalho está a ser bem divulgado pela equipa, a outra é o lado perverso da curiosidade dos media em relação às coisas “esquisitas”. No fundo, o classicismo da proposta (desenhos emoldurados e esculturas facilmente identificáveis como minhas) varre logo do debate a maluquice, a alienação... Chegas aqui e vês uma exposição, nada mais. No fundo, o produto é altamente deceptivo em relação às expectativas.


O Pedro disse uma vez numa conversa com Jorge Molder para a Gulbenkian: “(...) olho sempre de um lugar que outros talvez considerem excessivamente individualista para a época, se comparado com a generalidade das boas consciências praticantes. Sinto-me relativamente de fora, num lugar de grande vastidão, e nas obras que aí faço vou perscrutando o mundo em pensamento e aprendo a esquecer coisas que em tempos julgava saber importantes”. Esta citação relaciona-se com o que estamos presentemente a ver?

PCR: Essa conversa ilustra com plenitude um debate que jamais se extinguirá em torno daquilo que é suposto ser as motivações sociais ou políticas da criação artística. Há pessoas que não querem saber disso para nada, e provavelmente são os mais saudáveis. Eu inscrevo-me numa família de pensamento que acha que a criação artística per se é já uma leitura política do mundo. Por isso não tem que sofrer as vicissitudes, as anedotas e os ridículos de uma arte que, praticada por outras famílias, pressupõe ser activa, beligerante e participativa, recorrendo a meios e formas de expressão de uma infantilidade e superficialidade assustadoras sob o diáfano pretexto de com isso estarem a participar na luta política. Eu acho que a única forma que tens de ser plenamente político é seres plenamente silencioso, criativo e atento a tudo o que está à tua volta. Mesmo uma pintura monocromática é provavelmente mais forte enquanto intenção política do que um tipo que, imbuído das melhores razões, faz uma fotografia do Rodney King a levar pancada da polícia. Não há maneira melhor de fazer isso do que simplesmente pôr um vídeo no youtube. A política faz-se através da arte, mas de modo diferente, caso contrário é propaganda. A arte serve para expandir a inteligência das pessoas. Só se faz isso colocando perguntas e não dando respostas ou verificando factos. Isso é chamar estúpidas às pessoas e considerar que o público não tem capacidade para conceber o mundo. É preciso acrescentar algo que não haja antes.


Isso tem a ver com o que disse há pouco sobre o lado sensacionalista dos média em relação a esta exposição?

PCR: É propor uma verificação do curso normal dos acontecimentos. Aqui exacerbou-se isso. E fez-se uma declaração política que foi afirmar que estas pessoas não são malucas, fazem arte e eu vim fazer uma exposição com eles. Ponto final.

SR: Aqui ninguém corta as orelhas (risos)...


O Pedro, durante a fase de desenho, foi como um performer...

PCR: tentei estar em permanente movimento, fixar algumas posições... Li algumas coisas e com isso saiam ideias que fizerma parte da construção daquele momento.


Construiu uma personagem? Criou um subtexto?

PCR: Nada disso. Peguei num livro de poemas e ia lendo. Em certos momentos foi uma coisa puramente física, em relação com objectos, noutros foi como medir o corpo encostado à parede. Fez-se um percurso de vários momentos tendo como ponto de partida a questão do modelo e obrigando-os a desmarcarem-se, mudando constantemente de posição. Isso é importante, é um treino de atenção. De facto, a coisa que é verdadeiramente importante, e que é a base de todo o trabalho intelectual, é o espanto. O espanto é um conceito filosófico grego que representa a capacidade de manter a curiosidade em pleno e permanente estado de ebulição. Essa é a condição base da qual todos os artistas devem partir: estar em permanente estado de espanto. Isso treina-se e é uma pré-disposição que não pode nunca arrefecer para se captar tudo o que está à nossa volta. Por isso resolvi estar em posição permanente de fuga.


Embora em Portugal não se fale nisso, são fortes na América, por exemplo, as correntes da arte bruta, da arte informal ou da ousider art, que pode ser entendida como a arte das pessoas que estão de fora do sistema artístico... Pode-se incluir “Os Outros” nestes campos?

SR: Não. A arte bruta é diferente, pois trata de expulsar os males da própria pessoa para uma tela e depois há uma interpretação do psicólogo. Na arte bruta, o artista enche um quadro com informação própria, com o seu passado, as suas doenças... aqui não acontece isso. É um trabalho de arte contemporânea. Imaginemos que o Pedro adoece e vem fazer tratamento aqui ao hospital. Continua a ser um artista. Não há aqui o folclore da arte bruta que é muito puxada para a loucura. Estes doentes trabalham para poderem ter uma obra coerente e terem a oportunidade de a apresentar a galeristas e curadores.


Os problemas de cada um são postos à parte neste trabalho. Isso é uma tomada de posição em relação à outsider art e à arte bruta?

PCR: A arte bruta tem a ver com o começo da psicanálise, com a libertação das pulsões interiores, fazer sem pensar... Uma coisa que os surrealistas de alguma maneira seguiram. Depois ramificou-se para outras escalas de pensamento. A sua origem já vem do século XVII. Há colecções no centro da Europa com obras feitas por pessoas ditas “diferentes” que suscitaram um apetite coleccionista. No século XIX, os românticos implementaram a apetência pelos artistas “malditos”. A par disso há uma constelação de coisas colaterais como a atracção pela estranheza, que continua naquilo que se chama os “gabinetes de curiosidades”, principalmente na Alemanha, que juntavam coisas como ossos de baleia, frutas gigantes, pinturas eróticas e obras de arte feitas por doentes mentais. Havia a ambição de exaltar o individualismo e estratificar a anormalidade do mundo. É preciso ver que o interesse de Jean Dubuffet [o incentivador da arte bruta] não nasce do zero.


E esta exposição...

PCR: Não tem nada a ver!..


“Os Outros” estão no pavilhão 27 (Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, Av. do Brasil, 53) de quinta a 30 de Junho. Aberto de segunda a sexta das 10.00 às 17.00. Sábados das 14.00 às 20.00. A entrada é gratuita.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Isabelle Faria - Retratos da burguesia animal


Ao entrar no ateliê de Isabelle Faria, as peças prontas à espera de serem recolhidas para a exposição “Monopoly World – Sloth” (que abre portas esta quinta, na Galeria 111) espalham-se organizadamente no espaço. Destaca-se ao fundo um antigo frigorífico alterado, de onde saem risos e gargalhadas. Espreitando para dentro é possível ler: “A preguiça física está inerente a nós. A mental talvez seja genética.” Frases que levam à sua ideia de partida: a preguiça como braço direito dos poderes na sociedade, sejam eles económicos, políticos, sociais ou sexuais.

Isabelle Faria tem-se servido dos sete pecados mortais como pretexto para cada uma das suas séries. Agora prepara-se para apresentar mais um dos pecados em que incorre amiúde a espécie humana: “A preguiça é para mim o estado em que não aproveitamos o tempo para construir qualquer coisa, seja ela positiva ou negativa. Muitas vezes quando estamos ligados a poderes acabamos por pensar que as outras pessoas fazem as coisas por nós, mas isso nem sempre acontece. Temos de continuar a lutar, pois em todas as áreas há uma enorme competição”, explica. Fala-se de lóbis, portanto. Os grupos de pressão aos quais a arte muito intimamente se liga. Para enriquecer esta ideia, Isabelle foi buscar referências visuais ao cinema. A Duquesa, O Libertino ou Marie Antoinette são algumas das influências de Hollywood por si repescadas. Após misturados e cruzados estes elementos, o que capta a atenção é o conjunto de grandes desenhos com animais que fitam o observador com olhares inquisitórios e ameaçadores.

Desde sempre que os animais têm servido propósitos artísticos como metáforas para a humanidade. Júlio Pomar, por exemplo, é um pintor que explora frequentemente a fauna, desde a selvagem à doméstica, para retratar personagens. Seguindo esta tradição, Isabelle Faria inscreve mais um capítulo com criaturas agressivas, vestidas em trajes barrocos e que usam as armas de morte dos humanos. Cães, águias, mochos, abutres, chimpanzés, orangotangos... cada animal simboliza um comportamento. Os cães aqui desenhados obedecem ou exercem o poder? Eles podem ser submissos ou ferozes, conforme quem os comanda, tal como os humanos. Um bando de águias actua como guarda-costas, mas estas defendem beneméritos ou vilões? Há mochos que nos penetram a alma com o olhar – são símbolos de sabedoria que se podem virar contra nós. Há também abutres que esperam pelos restos de algo ou de alguém... Isabelle consegue representar assim diversos quadrantes da sociedade. Estas imagens, pela escala e pela quantidade de olhares que nos dirigem, provocam impacto, tornando-se impossível delas fugir impunemente.

A técnica de Isabelle faz-se de traços rápidos e espontâneos que jogam com subtilezas de linhas e causam uma expressividade forte em volume, tridimensionalidade e perspectiva. Nisto, a ambiguidade joga um papel importante: “estamos a ver uma coisa que não tem nada a ver connosco, ou somos nós que estamos ali?”, pergunta a artista. Uma exposição rica em paradoxos e duplas interpretações. Não há territórios seguros nem locais neutros nesta fábula irónica. Por entre estes “retratos de família”, há caveiras sorridentes, na lógica da tradição da pintura de “vanitas”, género que evoca a passagem do tempo e a precaridade dos prazeres materiais. A caveira serve para nos lembrar de que a morte é o fim de todas as coisas, reforçando o carácter irrisório das vaidades e orgulhos mundanos.

Podemos voltar a olhar para as esculturas com as suas luzes chamativas, mas é o desenho que ganha os pontos nesta exposição. Arrisca-se a levar uma ferroada quem se aproximar demasiado...

“Monopoly World – Sloth” está na Galeria 111 (Campo Grande, 113 e R. Dr. João Soares, 5B), de 22 de Abril a 12 de Junho. Aberta de terça a sábado das 10.00 às 19.00. Entrada gratuita.

Time Out, 20 de Abril de 2010

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Rui Effe - We're all in our private traps

Rui Effe

Quem há-de vir com justificação plena a presença do que é constituição responsável da actualidade?”, perguntava em 1964 António Areal num dos seus incendiários textos de crítica de arte. “Quem há-de vir defender as obras da vanguarda que ainda estão muito perto dos seus criadores? Quem primeiro há-de compreender que obras são essas que uma época cultural tem exclusivamente de exacta adequação progressis-ta?” Quem tiver a resposta pronta na ponta da língua que atire a primeira pedra e toque com a ponta da mesma língua na respectiva armadilha proposta nesta exposição por Rui Effe.

“We’re all in our private traps” representa um projecto paralelo, no sentido de representar um momento de divergência no percurso plástico de Rui Effe. Uma instalação que insinua uma crítica ao meio artístico, ou seja a si mesmo e aos elementos que rodeiam o artista. As armadilhas em que caem os diversos agentes de um mercado que se recusa a ser visto como apenas mercado mas que se deixa formatar por sistemas e lógicas promotoras e economicistas. Os que a esses sistemas fogem criam um outro, o sistema de crítica e academismo. Seja qual for a armadilha a que fugimos, acabamos sempre por cair em outra. O título, citação directa de Alfred Hitchcock em "Psico", alude à fuga impossível das situações que criamos e das quais depende o nosso comportamento. “We're all in our private traps”, dizia a personagem Norman Bates no famoso filme de Hitchcock. Nada mais verdadeiro - estamos todos presos das nossas decisões e concepções, das escolhas que fazemos no crime, na vida e na arte. Mas, e o próprio sistema com os seus metamórficos paradigmas? E os criadores? Não estarão até eles próprios “in their private traps” ao aceitarem a chave do quarto neste Bates Motel.

Norman Bates: You know what I think? I think that we're all in our private traps, clamped in them, and none of us can ever get out. We scratch and we claw, but only at the air, only at each other, and for all of it, we never budge an inch.
Marion Crane: Sometimes, we deliberately step into those traps.
Norman Bates: I was born into mine. I don't mind it anymore.
Marion Crane: Oh, but you should. You should mind it.
Norman Bates: Oh, I do, [laughs] but I say I don't.

Quando o artista tem de ser relações públicas e o galerista perde o poder, são os curadores que constituem as “superstars” da arte contemporânea. Estes, num pretenso e instável pedestal de superioridade, afogam-se em conceitos e sucumbem a lobbys. Os jornalistas confundem-se com os críticos e os críticos são apedrejados ao criticarem. Os directores dos museus obedecem a estratégias de atracção de públicos (mesmo que não sejam o seu público). Quem mais aprecia a arte contemporânea não a pode comprar e quem a compra interessa-se mais pela sua rentabilidade. As publicações sobre arte submetem-se às vontades de quem as possa financiar. Por outro lado, a linguagem usada é muitas vezes arquitectada para afastar públicos menos esclarecidos. As feiras de arte são luxuosos outlet shoppings, saldos da arte que não se vendeu na sua estação. As colecções de artistas emergentes vêem-se obsoletas ao fim de uma década e, os museus que optam por políticas conservadoras tornam-se invisíveis, iguais a tantos outros. Neste panorama, quem legitima e valida a arte que deverá perdurar? Voltando ao início, e numa actualidade que perturba passados 46 anos... Areal aventurou-se na possível resposta às suas perguntas: “Não é de todo o público; são os próprios criadores. Não são de maneira nenhuma os críticos. Porque se o sono da razão engendra de um modo geral o 'grande' público, de um modo particular o sono da razão engendra os críticos”.

Miguel Matos

terça-feira, 6 de abril de 2010

Fátima Mendonça - Pintar para cegar o medo


Falar do medo.... Daquilo que fazemos para nos esquecermos dele e daquilo que não fazemos por causa dele. A nossa sociedade não fala sobre o medo. Não será falar do medo a melhor forma de o afastar? Uma conversa sem tabús nem vergonhas sobre aquilo que assusta Fátima Mendonça. Para Cegar o Medo é o nome da sua última série de pinturas e um desenho, expostos recentemente na Galeria 111. Na senda de trabalhos anteriores, mas assumindo um confronto desejado, o discurso centra-se sobre o medo e sobre o que fazemos para o vencermos. «É como se nós tivessemos que fazer uma espécie de jogo connosco próprios, como paciências, para não pensarmos no medo», diz Fátima. Pelas tábuas, pelos tectos, através das paredes... em toda a casa os medos emergem. A Umbigo publica esta conversa, na esperança de um exorcismo.

Para Cegar o Medo fala de algum medo em específico?
Não. É mais o medo como situação inevitável à vida. Há dias li uma coisa que dizia: «quem não tem medo já perdeu a esperança». É incrível, mas o medo em excesso tolhe tudo, seca tudo à volta. Eu acho que o medo é um sentimento completamente presente na minha vida. A exposição é sobre os truques que eu arranjo, os tiques para entreter o medo quando ele vem. São paciências que estás a enrolar, a enrolar, a desfazer, a desfazer para desviar a mente e com isso acabas por criar um mundo à parte. A minha personalidade é toda feita com este tipo de estrutura. Sou eu. E a série é sobre essas coisas difíceis de fazer e que são muito cansativas, mas são a única forma de fugir do medo.

Eu, por exemplo, fujo do medo ao encará-lo de frente, fazendo aquilo que me assusta o mais rapidamente possível...
Pois, tu não sabes a sorte que tens. Essa é a única maneira adequada de o enfrentar. Aliás, quando eu falo com especialistas sobre isso, eles dizem que a única maneira de vencer o medo é fazer como o forcado faz ao touro. Eu não faço assim. E ao longo do tempo a coisa começa a entrar num ciclo de não enfrentar, de voltar atrás, é como uma dança. Aliás, é por causa disso que eu pinto as touradas: é agarrar o medo de frente em vez de arranjar um mundo à parte.

É engraçado que os textos que se escrevem sobre a tua obra não falam muito sobre isso. Vêem o toureiro como um elemento mais iconográfico, símbolo feminino e masculino...
Também se pode pegar por aí. Depois há o lado do bailado da sedução, que é um jogo que faz parte da vida... Mas o núcleo principal é uma questão de vida ou de morte. Uma questão de conseguires ou não livrares-te daquela situação com elegância porque o que está presente é a morte e a vida.

Por isso também a omnipresença da escrita nos teus trabalhos... A escrita pode ser obsessiva, como uma forma de fugir ou de concretizar qualquer coisa.
Ponho a ideia por escrito e muitas vezes há repetições da mesma palavra como se fosse uma espécie de hipnotismo, de ladaínha. Quando tens uma tarefa aborrecida, por exemplo, trauteias qualquer coisa repetidamente.

Olha, eu por exemplo, conto os meus passos...
Vê lá tu... o fascinante disto tudo é que no meio destas angústias, todos nós temos os nossos rituais completamente idiotas. Eu, por exemplo, nunca contaria passos... não atino com números. Tenho é a mania do número oito. Tenho a mania que dá sorte. Quando vou na estrada e estou chateada ponho-me a ver a matrícula do carro da frente. Quando apanho um com um oito, sigo-o pois é um carro com sorte. Mas isto é uma coisa perfeitamente controlável. Eu com estes trabalhos falo mais daquilo que não conseguimos controlar, de uma necessidade de ter que fazer aquilo senão ficas angustiado.

Se ficares paralizada pelo medo não consegues fazer nada. Isto é uma forma de pôr o medo a um canto para poderes seguir com a tua vida?
Exactamente, estou a arrumá-lo, a acalmá-lo. Ele está sempre ali, ameaçador, mas ponho-o tranquilo para poder, nas fugas, ir fazendo as coisas. É muito trabalhoso. Nos últimos anos tenho estado numa fase muito penosa a esse nível. Levares uma vida inteira assim é insuportável, é uma obsessão horrível. Depois há períodos em que parece que o medo emigra.

Estas tuas paciências, enquanto estavas a fazer estes trabalhos, deixaste de fazê-las no teu dia-a-dia? Foram transferidas para os quadros?
Sim, claro. Isto tem-me ajudado imenso, mas o espírito da realidade mantém-se. A minha forma de viver o dia-a-dia é uma forma muito ritualista e estou a ficar cansada de tanto ritual.

Largaste nesta série as estratégias de sedução presentes em séries anteriores?
Há alguma sedução, apesar de tudo. Nos quadros ainda tens as flores que são bonitas. As flores que vêem dos fatos de toureiro. Isto é como se fossem pequenos adornos dos fatos, chamados luzes. Eu comecei a pintar esses adornos, mas numa parede de casa. Quero transportar essas flores para as paredes onde estão os medos.

São amuletos?
Exactamente. O que é um amuleto senão isto? É qualquer coisa que te protege de um medo irracional, que tu nem sabes de onde vem. O medo deixa de ser tão feio, assim que lhe vês a cara. Quando tu vês o medo podes encará-lo. Mas às vezes trata-se de uma sensação de medo abstracto que não percebes de onde vem e que te causa angústia.

Então esses amuletos que vais buscar aos fatos de toureiro e penduras nas paredes dos teus quadros são para enganares o medo e não o teres de enfrentar tu?
Exactamente.

E os olhos?
Os olhos são o próprio medo... é como se tu tivesses uma sensação horrorosa de ser vigiado. Imagina que estás numa casa com as paredes todas brancas e onde de repente se começa a formar uma mancha, e depois aparecem outras manchas com feitios de olhos. Não acontece na realidade mas é um pensamento assustador. Eu lembro-me de em miúda, talvez com quatro, cinco anos, andar à procura de algum sinal esquisito nas paredes. Tenho muita tendência para olhar para as paredes ou para painéis de mármore e por segundos deslumbrar caras. Às vezes está lá o desenho quase todo.
Como na exposição de Daan van Golden, em Lisboa, na Culturgest, em que ele foi descobrir rostos em flores e figuras humanas em pingos de tinta de Pollock ou pássaros em veios de madeira?
Isso para mim é assustador, é como se lá estivesse um fantasma que nós não vemos. É uma das formas que eu tenho de ver o medo, porque é isso mesmo: num trabalho que tenha vários traços, uma pessoa que venha de fora pode ver outras coisas. Uma vez, uma pessoa que me comprou um quadro grande, chamou-me para me mostrar coisas que eu não vira, como caras, fantasmas... Havia uma série de elementos que ela descobriu e que não faziam parte do desenho. É assustador. É o nosso inconsciente que está a passar para lá, a gente julga que está a ver mas não está.
Mas é engraçado que o teu trabalho pode ser assustador, mas ao mesmo tempo é atraente...
Um trabalho que é só assustador não tem redenção. Na minha opnião, num quadro tem que haver sempre qualquer coisa que depois te traga redenção senão é um pesadelo. Pode ser uma coisa muito feia, mas que te traga ganhos ou que te traga uma explicação que te sirva. Tudo pode ser bom, tudo depende da forma como se conta a história. Um assunto pode ser terrível, mas ao mesmo pode ser belo e então dá-se a redenção.
Estes quadros estão cheios de presságios, de presenças misteriosas. Estes olhos lembram-me de quando eu era criança e tinha um poster enorme no meu quarto com um gato. E tinha a mania que o gato à noite mexia os olhos e me metia medo...
Também eu... eu via coisas assim.
E não conseguia dormir com a porta do roupeiro aberta pois imaginava monstros lá dentro...
E eu que não consigo estar tranquilamente deitada sem que tenha uma pontinha do edredão ou do lençol em cima de mim...

E os monstros debaixo da cama que nos comem se pusermos os pés de fora?
Eu ainda me lembro de, há alguns anos, ter a sensação de entrar uma mão pela cama dentro... Mas vamos perdendo estas coisas com a idade.

Voltando aos quadros, há alguns em que os olhos estão quase apagados...
É o medo que eu emparedei. Está emparedado.

E ao ver tudo isto, nota-se que as telas possuem alguns temas em comum com o passado, mas numa outra fase...
E é mesmo. Eu mesma sinto que estou noutra fase. Sinto que há uma mudança qualquer, como se eu agora estivesse mais perto de enfrentar o medo. Eu aqui falo em matar o medo, ou pelo menos deixá-lo estropiado, atadinho de pés e mãos, o que já não é mau.

E não te faz medo começar uma nova exposição?
Dá-me a impressão de que, apesar dos medos que estão na minha cabeça, acabo por não ter medo da realidade. Deve ser o ganho disto. É que depois os medos normais que as pessoas têm, eu não os tenho. Só que assim eu tenho uma vida muito mais atormentada do que se vivesse na realidade. Porque os medos que eu invento são de tal maneira mais angustiantes que é preferível viver na realidade.