domingo, 28 de junho de 2009

Mas afinal quem é Jorge Molder?


O artista em metamorfose. “Pinocchio” é a exposição que Jorge Molder apresenta no Chiado 8. O nariz de Miguel Matos aprovou.

Existem várias razões para um artista se auto-retratar. Uma delas é mentir – actividade preferida do bonequinho de madeira mais famoso do mundo. Quando um autor pinta ou fotografa um retrato de si próprio, ele pode querer assumir uma outra identidade sem no entanto fugir completamente de si mesmo. E com isso acaba por ser o “mirone” da sua própria imagem, um voyeur.
Jorge Molder trabalha o auto-retrato há quase 20 anos. Nas suas fotografias, sempre a preto-e-branco, o que vemos não é exactamente a imagem do artista mas sim a imagem de uma personagem criada por ele. Uma personagem que, ela própria, não é concreta. Não é sempre a mesma – e assim se cria o enigma da auto-representação.
Na exposição “Pinocchio”, Jorge Molder avança para um outro nível, ao encobrir o seu rosto com uma máscara feita a partir do seu rosto. A coisa complica-se e torna-se mais abstracta. O interesse aumenta...
Molder mandou executar uma escultura que o representasse: um duplo do seu corpo. E o que fez? Fotografou-se a partir desta peça.
A função da máscara é encobrir e disfarçar aquele que a veste. Sob a máscara encontra-se, supostamente, a verdade. Mas o que é que acontece quando a máscara representa, copia a verdade que se esconde por debaixo dela? É que em “Pinocchio”, a máscara que Molder veste é uma réplica do seu próprio corpo. Isto é uma subversão do retrato. Como diz o crítico de arte Bruno Marchand acerca destas obras, “é fácil perceber como nos habituámos a procurar nestas imagens pistas que nos conduzam a uma determinada verdade sobre o sujeito retratado. De certa maneira, esperamos que elas nos comuniquem um estado de alma ou que nos dêem acesso a uma espécie de autobiografia sumária do artista”. Mas neste caso, as expectativas, como sempre acontece nos trabalhos de Jorge Molder, saem goradas.
A personagem que nos aparece à frente fica ainda mais longe da sua pessoa. Até mesmo a ausência de quaisquer referências pessoais, temporais ou de local nas fotografias adensa o mistério. No entanto, afirma-se mesmo assim a continuidade da obra do artista, pois o discurso tem o mesmo tema, uma e outra vez. E qual é esse tema? A identidade – sempre esta. “Pinocchio” joga o mesmo jogo de sempre mas com novas cartas.
O mais perturbador neste magnífico conjunto de imagens é reparar que fotografias de máscaras, fragmentos de mãos e esculturas possuem tanta expressividade como o modelo a partir do qual foram criadas. Não só são mostradas as peças que constituem o duplo do artista como também partes do processo de construção destas mesmas peças. É a identidade a ser esticada e estilhaçada até ao seu limite. Cria-se uma sensação de estar perante um puzzle hipnótico, ao observarmos estas imagens de um metro quadrado numa companhia de seguros em pleno Chiado.
“Pinocchio” está patente no Chiado 8 (Largo do Chiado, 8) até 10 de Julho. De segunda a sexta das 12.00 às 20.00. A entrada é gratuita.


Time Out Lisboa, terça-feira, 23 de Junho de 2009

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Miguel Branco - Um Bestiário de Micropersonagens


Miguel Matos leu e recomenda o livro sobre Miguel Branco. Leve os óculos e visite também a exposição na livraria da Assírio & Alvim.



A fábula começa na rua Passos Manuel. Ao entrar pela porta da livraria Assírio & Alvim, o olhar foge para pequenos rectângulos nas paredes do fundo, na galeria. Uma pequena e simpática corça em bronze diz olá e apresenta o visitante aos seus amigos, representados à sua volta em minúsculas pinturas. São caveiras, macacos, avestruzes, galinhas e personagens ocultas que perturbam e intrigam. O que fazem eles aqui? São testemunhas do lançamento do livro sobre quem as criou.

Esta é a primeira monografia sobre a obra de Miguel Branco, contando com dois textos sobre os 25 anos da sua produção artística. Finalmente todas as criaturas de Branco estão reunidas numa análise a quatro mãos. São dois os autores: Manuel Castro Caldas, presidente do Ar.Co (escola onde Miguel Branco lecciona Pintura) e Mark Gisbourne, crítico de arte. Ao longo destas 144 páginas, faz-se uma leitura exaustiva e cronológica da obra do artista, percorrendo as várias fases, as várias séries temáticas, as diferentes abordagens e influências. Manuel Castro Caldas cede, aqui e ali, à tentação comum aos teóricos de arte: complicar o texto com referências que apenas entendidos poderão achar interessantes. No geral, consegue descrever e analisar a obra de Miguel Branco, mas fica-se pelas teorias e processos, deixando assim de lado a oportunidade de realçar a matéria mágica e intrigante de fábulas e mistérios que vivem encerrados nas peças do artista. Um texto objectivo, meio desencantado, como se Miguel Branco não fosse capaz de provocar sensações com as suas imagens.

No segundo texto, o inglês Mark Gisbourne já entra por análises mais livres e de cariz biográfico, mas também ele parece um pouco preso aos caminhos percorridos. Não se esquece, no entanto, do carácter enigmático da obra de Miguel Branco. Sendo assim, são dadas ao leitor as ferramentas de contextualização para que possa entrar pelo seu próprio pé na exploração deste mundo que engloba elementos aparentemente díspares como o rococó e o cinema de série B. Referências e contra-referências explicadas nestas páginas e que se revelam com o avançar das séries e dos trabalhos seja em pintura ou em escultura.

Num único parágrafo, Mark Gisbourne consegue sintetizar o trabalho deste artista: “o mundo de Miguel Branco é um verdadeiro arquivo de ideias e fontes, abarcando tudo, desde a arte da Renascença até aos cartoons manga, do horror gótico até aos espectáculos do bizarro ou à ficção do fantástico”. Salienta ainda o parentesco com os surrealistas belgas, como Magritte, e fala de uma tendência para a aproximação ao fantástico e à ficção científica, após temas de criminalidade, sadomasoquismo e “personagens transgressoras de cabeça tapada de negro”.

Segundo Gisbourne, “Branco não descarta soluções e influências que venham do seu interesse por formas históricas da arte, tais como a caricatura, a pose e o fingimento ou a máscara, mas elas serão expressas de modo cada vez mais intenso e livre nas suas madeiras de pequena dimensão que se tornaram as suas superfícies de eleição.”

Com uma qualidade excepcional na reprodução das imagens, o livro de Miguel Branco é em si um objecto precioso, documento biográfico do autor e explicativo do aparecimento daqueles animais insólitos dispostos em cenários abstractos, esqueletos grotescos e criaturas mascaradas que espreitam e se deixam observar em dimensões de miniatura. Ao vivo, esta pequena escala obriga o observador a aproximar-se de tal maneira à imagem que esta se perde e dilui. Agora pode levar estes bichinhos e personagens mascaradas para casa, mas certifique-se de que não saltam das páginas para os seus sonhos...

A exposição “Trabalhos Recentes” de Miguel Branco está patente na livraria Assírio & Alvim (Rua Passos Manuel, 67 B) até ao final de Junho. Aberta de segunda a sábado das 10.00 às 13.00 e das 14.00 às 19.00 horas. A entrada é gratuita e se comprar lá o livro ainda tem 10% de desconto.

Assírio & Alvim / ADIAC
30€

Time Out, terça-feira, 19 de Maio de 2009

terça-feira, 12 de maio de 2009

Carlos Calvet - Geometrias de um Surrealista Reinventado


Miguel Matos ficou surpreendido com a nova exposição de Carlos Calvet e fez-lhe perguntas sobre a sua arte.

De entre os poucos surrealistas portugueses vivos e assumidos, Carlos Calvet é o segundo no pedestal, logo a seguir a Cruzeiro Seixas. Esta semana, na Galeria Valbom, ele demonstra que se pode surpreender tudo e todos depois de 60 anos de pintura. Para quem se habituou às paisagens metafísicas de cores garridas e às explosões apocalípticas dignas de capas de livros de ficção científica, esta nova visão geométrica é uma surpresa. Eis a conversa tida enquanto se desembrulhavam quadros para a montagem.

Segundo consta, o Carlos entrou na exposição dos surrealistas em 1949 de uma maneira muito informal... Conte lá como foi isso.

Na altura não estava muito integrado no grupo mas convivia um bocado com o Mário Cesariny, o Cruzeiro Seixas e o Mário Henrique Leiria. Participei na exposição com um quadrinho que nem entrou no catálogo. O convite foi feito à última hora. Eu andava a estudar arquitectura e não nos encontrávamos muito. Arranjou-se uma moldura improvisada e lá entrei na exposição. Fiz um quadro engraçado que se chamava “Bicho que dá nas Praias”. O Cesariny gostou tanto que ficou com ele durante muitos anos até à altura em que foi viver para Inglaterra. A pintura era sobre papel e, quando ele voltou, passados alguns anos, o papel tinha-se desfeito, talvez com a humidade. Perdeu-se para sempre.

Como é que aos 80 anos passou de uma pintura essencialmente figurativa e surrealista para um registo geométrico e abstracto?

Passei por várias fases, com muitas experiências pelo meio e já tinha feito tentativas destas ao princípio. É realmente uma visão modificada, mas eu gosto de criar paradoxos na imagem.

O que é que torna a sua pintura tão enigmática? Será pelas escalas diferentes na mesma imagem que dão outros significados aos objectos representados? Como as mãos enormes que parecem causar uma intervenção divina...

A mão é realmente um instrumento com um poder simbólico imenso. São os objectos do mundo exterior que adquirem uma qualidade semântica e metafórica e que enriquecem a atitude expressiva.

E afinal a sua pintura é surrealista ou metafísica?

Essas coisas não estão afastadas. O Chirico era metafísico... O surrealismo é muito vasto e variado, com tantas possibilidades que se impregna... Quem experimentou ficou preso pelo surrealismo. Pode haver uma atitude surrealista concentrada numa determinada expressividade única, pessoal, e outra que é muito mais absorvente das variedades possíveis.

No fundo, quer queiramos quer não, a dimensão onírica faz parte de todos nós...

Pois faz e sempre foi uma das grandes riquezas da arte, a exploração dos conteúdos do inconsciente. O inconsciente aparece sempre disfarçado na arte, de maneira metafórica.

E estas novas imagens de formas que parecem puramente geométricas, também têm origem no inconsciente?

A geometria está ligada ao mundo dos arquétipos platónicos, pitagóricos e também à psicanálise moderna com o Jung. O mundo arquetipal é composto por formas fundamentais que estão na origem de tudo. São materiais que aparecem de variadas maneiras mas com o seu sentido próprio, que se refere a esses arquétipos.

Daí a mistura, em alguns quadros, do geométrico abstracto com o figurativo?

Isso cria uma dualidade que é estimulante para o pensamento e para o prazer da visão. É um paradoxo.

Como é que nasce uma das suas imagens?

Tenho centenas de esboços. Trabalho com um bloco de algibeira e desenho onde calha, em qualquer sitio, quando e onde me apetece. São apontamentos que depois passam a ser quadros, mais tarde ou mais cedo. Faço tudo ao gosto, não trabalho com regras geométricas. Uma regra matemática até pode estragar a expressividade, que está ligada à emoção.

Acha que as pessoas ainda estão interessadas no surrealismo?

Parece que sim, mas a mim não me interessa essa questão. As pessoas gostam do que eu faço e isso chega-me.

“Carlos Calvet – Pinturas Recentes” está patente na Galeria Valbom (Av. Conde Valbom, 89 A) de 9 de Maio a 30 de Junho. Aberta de segunda a sábado das 13.00 às 19.00 . A entrada é gratuita.

Time Out, terça-feira, 5 de Maio de 2009

segunda-feira, 11 de maio de 2009

João Figueiredo - Back to the Palace



Ingres e Pessoa: juntos e recombinados


João Figueiredo ajuda o IADE a apagar 40 velas com uma exposição de pintura. Miguel Matos foi ver a festa.


O que têm em comum o pintor Jean Auguste Dominique Ingres e o poeta Fernando Pessoa? Aparentemente nada. Mas João Figueiredo juntou-os numa exposição de pintura no IADE, por ocasião das comemorações dos 40 anos desta escola.

João Figueiredo tem já um longo historial de obras criadas tendo como base a mistura de elementos e a subversão de ícones, trabalhando com colagens e recortes, pintando sobre obras de outros autores. Mas porquê juntar estes dois nomes? “Ingres aparece porque é o meu pintor preferido. Sei que não há uma relação directa entre ele e Fernando Pessoa mas foi uma forma de juntar a pintura à literatura”, diz. Tudo começou quando o artista ganhou um prémio enquanto estudante de Design de Comunicação no IADE.

Esse prémio consistia numa colecção de obras de Fernando Pessoa, revistas e anotadas por António Quadros. “Esta é uma homenagem a ele, fundador do IADE e grande estudioso da obra de Fernando Pessoa. Inspirei-me neste homem para interpretar Ingres, aproveitando para discorrer sobre o universo feminino e juntando isso às dúvidas existencialistas de Pessoa”, explica João Figueiredo.

Em “Back to the Palace”, Fernando Pessoa está presente não tanto nas imagens mas mais nos segredos que estas mesmas imagens guardam. Pessoa serve como pretexto para contar uma outra história para além da que Ingres contou. Na verdade, a exposição tem detalhes pessoais do autor pois é exposta na sala onde há anos João Figueiredo recebeu o referido prémio.

Para além dos cortes, recortes, amputações e acrescentos em copy/paste criativo, há um aspecto que se repete: muitas das figuras encontram-se encerradas em caixas que parecem aquelas que os mágicos usam para cortar pessoas ao meio. Isto tem uma razão, como explica o pintor: “antes de chamar esta exposição ‘Back to the Palace’, estive para lhe dar o nome de ‘A Impossibilidade do Espaço’. Tem a ver com a impossibilidade da mente, da nossa múltipla personalidade e daí a referência a Fernando Pessoa e aos seus heterónimos. São, no fundo, caixas e espaços que interagem mas que sugerem formas improváveis. Há imagens que estão de tal maneira desmembradas que parecem impossíveis.” É todo um intrincado de espaços e pessoas em planos que não parecem pertencer à realidade. Até o célebre quadro O Banho Turco, de Ingres, nunca mais foi o mesmo após o remix de João Figueiredo.

“Back to the Palace” está patente no IADE – Palácio Pombal (Rua do Alecrim, 70) de 5 a 29 de Maio. Aberto de segunda a sexta das 10.00 às 18.30 e sábados das 12.00 às 17.00. A entrada é gratuita.

Time Out, 28 de Abril de 2009

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Rui Calçada Bastos - Cabin Fever




Farto de voar em classe turística?


Miguel Matos acompanhou Rui Calçada Bastos numa viagem de avião e ficou com “Cabin Fever”.

Senhores passageiros da RCB Airlines, apertem os cintos e apaguem os cigarros... “Cabin Fever” é o termo usado para referir uma reacção claustrofóbica que acontece quando alguém está isolado ou fechado durante um largo período. Dá origem a sintomas como irritabilidade, falhas de memória, inquietação ou sono excessivo.
O avião, numa viagem de longa distância, é o local privilegiado para sentir este tipo de distúrbio. “Quando estás há muito tempo num avião perdes a noção do espaço, de onde estás...”, diz Rui Calçada Bastos, que decidiu transpôr esta desorientação para a exposição que apresenta esta semana na galeria Appleton Square.

A instalação “Cabin Fever” combina uma selecção de oito fotografias de grande formato com uma intervenção estrutural, em que o artista construiu um labirinto através do qual os visitantes têm de se deslocar para conseguirem ver as imagens de perto. A exposição em causa não será uma qualquer mostra de fotografias penduradas numa parede. “Cabin Fever” é, acima de tudo, uma instalação fotográfica colocada por entre uma estrutura de pilares brancos que criam corredores cruzados e provoca uma sensação de desorientação.


Este dispositivo funciona da mesma forma que a estrutura dos blocos verticais do Museu Judaico em Berlim. Ao contrário da forma como habitualmente os visitantes se deslocam através de um espaço expositivo, “Cabin Fever” explora a desestabilização das nossas perspectivas ao obrigar à sensação de uma mudança constante dos nossos eixos de navegação.


Rui deverá conhecer muito bem esta sensação pois a sua vida tem sido feita de viagens para cá e para lá. Aos 16 anos foi para Macau, onde viveu durante uma década. Depois veio estudar para Portugal. Está há sete anos em Berlim, inicialmente para uma residência da Gulbenkian na Künstlerhaus Bethanien, onde muitos artistas portugueses se fixaram temporariamente, como Noé Sendas e Adriana Molder. Hoje é responsável pela galeria Invaliden 1, em conjunto com outros artistas. Recentemente voltou a voar muitas horas para realizar um projecto fotográfico e de vídeo em Xangai.



A ideia da viagem atravessa a vida e o trabalho deste artista desde sempre, assim como as ideias relacionadas com os bloqueios à comunicação. Na verdade, quando viajamos num avião estamos todos num espaço confinado e evitamos toda e qualquer tentativa de comunicação com a pessoa que está apenas a 10 cm de nós (ou ao nosso colo, se for num avião de uma companhia low cost). O espaço entre a janela e o banco da frente é aquela nesga discreta por onde podemos vislumbrar alguns pormenores que possam identificar a pessoa que está à nossa frente. E numa viagem longa, por vezes esta pequena quantidade de informação pode tornar-se subitamente interessante. É numa perspectiva que está entre o voyeurismo e a fuga à interacção que “Cabin Fever” se desenvolve. Como explica Rui Calçada Bastos: “Percebe-se mais de uma pessoa quando se vê esta de costas do que de frente. Já Magritte explorava isso. Estar de costas é o lado que não conheces de ti e que os outros vêm e que acrescentam ao teu eu. Tu de costas és tu. De frente podes ser ou não ser.”

“Cabin Fever” está patente na Galeria Appleton Square (Rua Acácio Paiva, 27 r/c) de 24 de Abril a 23 de Maio. Aberta de terça a sexta das 14.00 às 19.00. A entrada é gratuita.


Time Out
, terça-feira, 21 de Abril de 2009

terça-feira, 28 de abril de 2009

Lara Torres - Experiências entre a moda e a arte



Hoje visitei a Lara no seu atelier... Aqui vai o texto que escrevi sobre ela há um ano sobre “Fac Simile / Mimesis”:

A impressão da vivência pessoal marcada numa camisola. Os vestígios de um relógio. A reminiscência do tempo numa camisa já usada... O vestuário como registo de memórias é o ponto de partida para a exposição “Fac Simile”, de Lara Torres. A roupa como comunicação não verbal, como primeira camada pessoal. “Relacionamos as roupas com a altura em que foram adquiridas, com acontecimentos ou com determinadas épocas”, diz a criadora. É daqui que tudo parte para frames tridimensionais em tecido, porcelana, látex e prata.

Finalizado o curso de moda, Lara Torres, venceu o concurso Sangue Novo da Moda Lisboa, que lhe possibilitou estagiar durante três meses com Alexander McQueen, em Londres. Voltando a Portugal, apresenta colecções regularmente na Moda Lisboa. Mas o trabalho que Lara apresenta esta semana, apesar de se basear num conceito de vestuário, pouco tem de moda. O projecto “Fac Simile” é realizado em conjunto com Mário Nascimento (ceramista) e Catarina Dias (joalheira). “Desde 2005 que desenvolvo uma investigação sobre a relação entre o vestuário e a memória. E embora as colecções possam ter um aspecto diferente, é sempre a mesma base de pesquisa.”

Fac Simile” representa o caminho percorrido até chegar a uma colecção de moda. Só que esta experiência inscreve-se num outro domínio de interesse, com uma linguagem mais aparentada com as artes plásticas. “Para mim todas essas fronteiras e separações não fazem sentido. Quando faço uma exposição estou a utilizar um formato que não pertence à moda e sim às artes plásticas, mas porque existe um conteúdo que precisa dessa forma. Quero resolver o problema da relação das pessoas com a moda quando a encaram como uma futilidade. Quero atentar contra isto, porque me incomoda. Por ser vestuário, as pessoas tendem a pensar que o meu trabalho é pouco sério.

Assim, decidi mostrar tudo o que foi feito antes de concretizar este projecto que culmina na Moda Lisboa com a performance “Mimesis”. A exposição é feita no meu atelier e mostra as coisas que correram mal, as experiências, os fracassos. Na moda, normalmente apenas se vê o produto final, mas o processo é o mais importante. Decidi mostrá-lo para que as pessoas percebam por-que é que a minha roupa lhes pode parecer tão estranha.”

Os três criadores juntaram as áreas de forma a que se perdessem os contornos entre elas. Isto foi possível porque Lara Torres conseguiu um apoio da Direcção-Geral das Artes, o que já de si denuncia não só o carácter peculiar de “Fac Simile”, como a abertura que começa a haver nas instituições estatais. Lara não se proclama artista, mas utiliza as ferramentas da arte. Por outro lado, as peças expostas são objectos e não roupas. Não se destinam a ser usadas no corpo e possuem uma profundidade plástica e conceptual que transformam o todo num conceito artístico, uma entidade híbrida, experimental e transversal (características da arte contemporânea).

Faz sentido investigar o lugar do vestuário e a sua relação com o homem. A questão da memória tem a ver com isso. Comecei a pensar nesta ideia quando vi uma foto-reportagem sobre os conflitos na Bósnia, acompanhando os destroços do que tinha acontecido. Impressionou-me brutalmente. Era uma recolha dos corpos e das peças que os podiam identificar. Havia mortos e sacos com objectos pessoais, roupas. Por vezes só através do vestuário é que os familiares conseguiam identificar as vítimas. Foi daí que parti para a investigação da memória e da identidade. Uma busca quase arqueológica em que cada camada de trabalho oferece conhecimentos e descobertas sobre os próprios materiais.”

Um inventário de fragmentos e objectos íntimos, como memórias desfocadas com o passar do tempo. “Fac Simile” é uma exposição surpreendente e poética.

Time Out, 4 de Março de 2008


segunda-feira, 27 de abril de 2009

Sitexcape - A arte em versão ao domicílio


A arte em versão ao domicílio (tipo, vamos a casa)

Precisa de estímulo artístico? Miguel Matos receita-lhe várias doses de um remédio criativo chamado Sitexcape

A arte pode assumir as formas mais diversas e pode suscitar os encontros mais inesperados. É de encontros que vive um projecto recente chamado Sitexcape.com. Como dá para ver pelo “.com” é um site, pois claro. Mas aqui reside uma plataforma de troca de experiências e conhecimentos, pessoais, teóricos, práticos e quase sempre artísticos. “A ideia do sitexcape é ser um ponto de encontro de ideias e experiências de criação”, explica Natércia Caneira, artista e criadora deste site que envolve outros autores como Orlando Franco, Susana Anágua e Bábara Assis Pacheco, entre outros. “Queremos promover situações criativas. Não no sentido de uma galeria, uma revista ou um simples website. Queremos criar situações paralelas ao que normalmente é entendido como arte”.

No Sitexcape, workshops, precursos culturais, tertulias e residencias artisticas são elaborados com uma forte componente experimental. O projecto mais interesante será as reuniões de amigos em casa de coleccionadores de arte, com a intervenção dos artistas deste colectivo. Em Portugal temos escondidos em suas casas coleccionadores privados com obras muito importantes que só são mostradas aos seus amigos em jantares privados. São pessoas endinheiradas que estão fartas de sair e fazem festas em casa. O sitexcape aparece nestas festas e dinamiza a noite com as peças de arte e as palavras trocadas em casa. “As pessoas compram obras de arte mas por vezes não sabem muito bem porque gostam daquilo e não possuem bagagem para entender e fazer ligações. Compram por gosto. O que nós fazemos é ir lá a casa e esclarecer as coisas. Às tantas cria-se uma dinâmica em que de repente estamos a falar de política, de história... Avança-se para uma série de conversas que partem da arte para outros temas e em que todas as pessoas participam. Costumo levar outro artista comigo e trabalho também com pessoas da área de teatro, de história de arte... tudo depende da colecção que as pessoas têm em casa. Nao há limites de tempo para a conversa. Dura o tempo que tiver de durar”, diz Natércia. É o verdadeiro espírito de tertúlia, quando se pensava que esta se arriscava à extinção.

Mas como funcionam estas tertúlias animadas pelo Sitexcape? O coleccionador contacta o colectivo através do site e Natércia faz-lhe uma visita. Normalmente estes serões são só para amigos, à porta fechada pois os coleccionadores são como todos nós e não gostam de trazer estranhos para casa e muito menos de revelar tesouros publicamente. É uma coisa mais intimista e que passa de boca em boca. O resultado são experiências únicas. “conhecemos pessoas fantásticas com experiências interessantes e diferentes. Fascina-me este meandro de pessoas que são invisíveis à maior parte da sociedade”, revela Natércia. Mas o sitexcape tem outras valências e não se fica por aqui. Existem também as residências artísticas em que se junta um grupo de pessoas durante três dias fora da cidade, num espaço rural, fora do contexto em que normalmente os artistas trabalham. Partilham-se assim ideias e projectos. A questão que está por base é a mesma que, segundo Natércia Caneira, dá origem ao nome Sitexcape: “quando estas desenquadrado és mais criativo e descobres coisa novas. É a ideia do artista em viagem, típica do século XIX que faz cada vez mais sentido”. Para os mais afoitos da aprendizagem há workshops em parceria com instituições como os de desenho que neste momento decorrem no Museu de Ciência e no Museu de História Natural. São aulas práticas para pessoas que já sabem alguma coisa mas que querem um acompanhamento ao seu trabalho.

As dicas estão lançadas para coleccionadores que querem animar uma noite com amigos e para artistas em busca de inspiração. Agora é explorar o Sitexcape e descobrir outras ferramentas para crescer na arte.

Time Out, Março 2009